segunda-feira, 31 de maio de 2010

A evolução da gestão pública no Brasil (v.2)

A Evolução da Gestão Pública no Brasil

O Estado Democrático de Direito se caracteriza como aquele submetido ao direito, cujos poder e atividade estão regulados pela lei como expressão da vontade geral. Contudo, somente o fato de o Estado se submeter à lei não seria suficiente para a plena caracterização do regime democrático, posto que, se não estiver assegurada a necessária submissão à vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos, o Estado não cumprirá sua principal função, que é construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ponto fulcral neste debate é que quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accontability. Valores como igualdade, dignidade humana, participação e representatividade, por exemplo, são indicadores positivos da ascensão ao Estado Democrático de Direito. De outro modo, a inexistência de controle e penalidades aplicáveis ao serviço público enfraquece o ideal democrático de governo. Para melhor definição e avaliação das políticas públicas é fundamental a compreensão das concepções de Estado e de política que sustentam tais ações e programas de intervenção, da estrutura institucional e seu processo de financiamento e gestão.

Somente a partir de 1930 é que são implementadas, pela primeira vez no Brasil, políticas de gestão pública, não apenas como perspectivas à administração, mas como técnica inspirada no modelo burocrático da autoridade racional-legal weberiana. Da mesma forma, os direitos políticos e civis foram concedidos a essa época, destacando-se o sufrágio universal e o direito de voto à mulher. No campo social é criado o Ministério do Trabalho, a CLT, a carteira de trabalho, a jornada de oito horas, além do salário mínimo. Vargas criou um órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, que o auxiliaria no processo de reforma burocrática, o DASP, responsável pela profissionalização das carreiras do serviço público. Todavia, esse novo modelo de Estado caracterizava-se por um vasto poder de intervenção na ordem econômica e social, de modo que o caráter patrimonialista – viés autoritário dessa modernização burocrática – privilegiaria ações privadas em detrimento das públicas.

Mais tarde, questões relacionadas com a modernização da gestão pública continuavam vigentes, porém centradas em outros objetivos, destinadas a atender de forma mais eficiente o Plano de Metas, que consistia no investimento em áreas prioritárias para o desenvolvimento econômico, como infra-estrutura e indústria. Contudo, de Jânio a Jango, tensões sociais dominaram o cenário político e predominava a ambivalência na administração pública, que se subordinaria ao golpe militar de 1964.

Semelhante a Vargas os governos militares propuseram reformas administrativas tendo como base legal o Decreto-Lei nº 200, que, entre outros, balizava a descentralização das atividades do setor público, a expansão das empresas estatais e sobretudo baseava-se em mecanismos de gestão do setor privado. Neste período foi criado o INPS, o FGTS, o BNH e o Funrural. O Programa Nacional de Desburocratização, cujo objetivo era simplificar o funcionamento do aparelho burocrático do Estado no governo Figueiredo não alcançou o que se pretendia. O período pós-Nova República foi marcado por uma grande paralisia na gestão pública, no entanto, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou a participação da sociedade na gestão das políticas públicas, conselhos, orçamento participativo e plebiscito são exemplos dessa abertura.

Não obstante, após vinte anos de ditadura, o primeiro presidente eleito pelo voto direto distanciou-se das instituições públicas e teve seu legado messiânico maculado por um processo de impeachment. Sua gestão marcou tragicamente a administração pública por meio de uma reestruturação sem critérios racionais de controle. Tais tentativas de reforma desestruturou todo o aparato administrativo e agravou a ineficiência estatal. Na gestão FHC, entretanto, foram definidas mudanças através do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado que acabou tornando obsoleta a administração pública, dada a quantidade de propostas de reformas estruturais no campo das finanças, da previdência e do sistema institucional-legal. Contudo a meta do governo era reduzir seu tamanho e instituir o Estado mínimo.

Em todos esses casos o valor político accontability é muito baixo, visto que a capacidade dos cidadãos de agir na definição das metas coletivas de sua sociedade é quase nula. Embora a Constituição de 1988 garanta o acesso à cultura, ao trabalho, ao bem-estar social, entre outros, não seria demais acreditar que tais direitos nunca valeram para todos. Foram anos de muitas intervenções políticas e descaso com a gestão da participação pública. A “pobreza política”, segundo Campos, decorre da expectativa do povo na condição de tutelado e do Estado como tutor, uma vez que as pessoas optam por esperar que o Estado defenda e proteja seus interesses não organizados .

Conclusão:

A recuperação dos valores fundamentais, tais como cidadania, liberdade e justiça social é a saída para a crise política, pois como menciona Anna Maria Campos, “a impotência política deriva da falta de organização da população”. Quanto à gestão pública, os governos ainda reverenciam critérios particularistas, clientelistas e dominam as indicações para cargos de confiança. O serviço público ainda continua altamente vulnerável à politicagem, posto que o emprego público ainda funciona como moeda de troca no jogo político. Há uma relação de casualidade entre desenvolvimento político e a competente vigilância no serviço público. Portanto, quanto menos amadurecida a sociedade, menos provável que ela se preocupe com a accontability. Apesar dos esforços de mudanças no aparelho burocrático do Estado, as transformações ainda estão por vir.

Referências Bibliográficas

FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do Estado. 3ª ed. Forense Universitária. 2006, p. 244
CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): fev/abr 1990
MARTINS, Paulo Emílio Matos e PIERANTI, Octavio Penna, Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro. ed. FGV, 2006
PINHO, José Antonio Gomes de and SACRAMENTO, Ana Rita Silva. ‘Accountability’: já podemos traduzi-la para o português?. Rev. Adm. Pública [online]. 2009, vol.43, n.6, pp. 1343-1368. ISSN 0034-7612.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Para discutir o Brasil de ontem e de hoje. Capítulo 5 – O Primeiro Reinado

A consolidação da independência se deu em poucos anos, mas isso não se faz sem alguns conflitos militares relativamente graves. Brasileiros favoráveis à independência reuniram forças para lutar contra as tropas portuguesas que por aqui estavam desde a vinda da família real. O francês Pedro Labatut, Lord Cochrane e o brasileiro José Joaquim de Lima e Silva se destacaram nessa época. Entre os conflitos mais importantes destacam-se os que ocorreram no Sul e na Bahia e na província da Cisplatina, atual Uruguai, as tropas portuguesas resistiram, mas acabaram se retirando em novembro de 1823, com isso, começa uma longa guerra pela independência uruguaia, agora contra brasileiros e não contra os portugueses.

No plano internacional, os Estados Unidos reconheceram a independência em maio de 1824. Informalmente, ele já reconhecida pela Inglaterra, interessada em garantir a ordem na antiga Colônia, país que àquela altura, já era seu terceiro mercado externo. O reconhecimento formal só foi retardado porque os ingleses queriam a imediata extinção do tráfico de escravos.

Em agosto de 1825, por um tratado em que o Brasil concordou em compensar a Metrópole em 2 milhões de libras pela perda da antiga colônia e em não permitir a união de qualquer outra colônia com o Brasil. A necessidade de indenizar a Coroa deu origem ao primeiro empréstimo externo, contraído pelo Brasil em Londres.

A independência do Brasil aconteceu com relativa facilidade em relação ao complexo processo de emancipação da América espanhola, enquanto o Brasil permaneceu unificado aquela permanecia fragmentada em várias nações, exemplo único da América Latina, o Brasil ficou sendo uma monarquia entre repúblicas.

Nos primeiros anos após a independência, o debate político se concentrou no problema da aprovação de uma Constituinte. Eleições para elaboração da mesma ocorreram após o 7 de setembro e a Constituinte se reuniu no Rio de Janeiro em maio de 1823. A maioria dos constituintes adotava uma postura liberal moderada, consistente em defender uma monarquia constitucional que garantisse os direitos individuais e estabelecesse limites ao poder do monarca. Os constituintes queriam que o imperador não tivesse tanto poder, para o imperador era necessário criar um Executivo forte, justificando assim a concentração de maiores atribuições nas mãos do imperador.

Os membros da Constituinte não tinham nada de radicais, mesmo os liberais com ativa presença no movimento da Independência foram presos ou exilados. A maioria dos constituintes adotava uma postura liberal moderada, defendiam a monarquia constitucional – com limites ao poder do imperador – que garantisse os direitos individuais.

Logo surgiram desavenças entre a Assembléia e Dom Pedro, apoiado por seu ministro José Bonifácio, acerca do direito do imperador de dissolver a futura Câmara, forçando novas eleições. Queriam também que ele não tivesse o poder de veto absoluto. Em 1823 José Bonifácio foi afastado, porque ficava espremido entre a crítica dos liberais e a insatisfação dos conservadores. Daí para frente, na Constituinte, José Bonifácio e seus irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco fariam constante oposição ao governo.

A disputa entre os poderes acabou na dissolução da Assembléia Constituinte por Dom Pedro. Com apoio dos militares, elaborou um projeto que resultou na Constituição promulgada em 25 de março de 1824, que vigorou com algumas modificações até o fim do Império. Definiu o governo como monárquico, hereditário e constitucional, o Poder Legislativo foi dividido em Câmara e Senado, com eleições temporárias na Câmara, neste caso o voto era indireto e censitário, enquanto a do Senado era vitalícia. O país foi dividido em províncias cujos presidentes seriam nomeados pelo imperador. Foi instruído o Conselho de Estado e o Poder Moderador, idéia do escritor Frances Benjamin Constant que defendia a separação entre o Poder Executivo – os ministros do rei – e o Poder propriamente imperial, neutro ou moderador. Disso resultou numa concentração de atribuições na mão do imperador.

Dissolvida a Constituinte e decretando a Constituição de 1824, o imperador deu uma clara demonstração de seu poder. Em Pernambuco, esses atos discricionários colaboraram para propagar as idéias republicanas, antiportuguesas e federativos. A nomeação de um governador não-desejado abriu caminho para revolta. Seu chefe, Manuel de Carvalho, proclamou a Confederação do Equador em 2 de julho de 1824. Inspirado por Cipriano Barata e Frei Caneca, a Confederação deverei se reunir sob forma republicana além de Pernambuco, as províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e o Pará.

A Confederação do Equador não teve condições de resistir militarmente às tropas do governo até que em novembro de 1924 terminou por completo. As marcas da revolução de 1824 não se apagariam facilmente, ela pode ser vista como parte de uma série de revoltas ocorridas em Pernambuco entre 1817 e 1848.

Em março de 1831, a temperatura política subiu no Rio de Janeiro, os primeiro tumultos detonaram a “noite das garrafadas”. Seguiram-se tentativa de formação de um novo ministério e novas manifestações de protesto. Por fim Dom Pedro I foi forçado a abdicar em favor de seu filho Dom Pedro II, em 7 de abril de 1831. O menino Pedro tinha apenas cinco anos, quando o pai partiu para a Inglaterra, sonhando em recuperar o trono português, ocupado por seu irmão Dom Miguel.

Fonte: História do Brasil / Boris Fausto - 13 ed. - São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O contole constitucional no âmbito do Poder Legislativo


CURSO DE PROCESSO LEGISLATIVO AVANÇADO - ILB / Senado Federal

O contole constitucional no âmbito do Poder Legislativo
O papel das Comissões de Constituição e Justiça das Casas Legislativas
Brasília / 2010

O texto pretende abordar o controle de constitucionalidade no momento em que se realiza a formação do ato normativo, antes portento do projeto virar lei. Trata-se, pois, do controle legislativo de constitucionalidade, que visa, antes de tudo, o impedimento da inserção no sistema normativo de preceitos legais que padeçam de vícios de constitucionalidade durante o processo legislativo, como é o caso de leis aprovadas pelo Poder Legislativo, sancionadas pelo Presidente da República e, depois, tem declarada sua inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário, em detrimento do crivo a que se submeteram seus pressupostos constitucionais.

O enfoque ambiciona descrever os caminhos com os quais algumas proposições legislativas chegam mais rapidamente à sanção e demonstrar que, impulsionados por mecanismos legais e, não raro, políticos, determinadas matérias tem seu tempo de tramitação abreviado, ainda que, para tanto alguns aspectos processuais simplesmente não sejam obedecidos, para posteriormente engendrar no ordenamento jurídico mais uma lei que terá sua constitucionalidade questionada.

A começar pela história do controle, assenta Hans Kelsen, citado por Alexandre de Moraes:[1]
“O controle de constitucionalidade configura-se, portanto, como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um estado de direito.”

Ensina Moraes[2], que a idéia do controle de constitucionalidade está ligado à supremacia da Constituição sobre todo ordenamento jurídico e, também, à rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamentais. A supremacia constitucional adquiriu tamanha importância no Estado Democrático de Direito, que Cappelletti afirmou porquanto o nascimento e a expansão dos sistemas de justiça constitucional após a Segunda Guerra Mundial foram os fenômenos de maior importância na evolução social de inúmeros países, sobretudo os europeus.[3]

É possível identificar três grandes modelos de justiça constitucional: o modelo norte-americano, que afirmou em 1803 a supremacia jurisdicional sobre todos os poderes constituídos, inclusive sobre o Congresso dos Estados Unidos da América e, posteriormente em 1920, a constituição austríaca criou um tribunal constitucional com exclusividade para o exercício do controle judicial de constitucionalidade em oposição ao sistema norte-americano, já que não se pretendia a resolução de casos concretos, mas a anulação genérica da lei ou ato normativo incompatível com as normas constitucionais.[4] Por fim o modelo francês, que presume um controle de constitucionalidade preventivo a ser realizado por um Conselho Constitucional, desde que provocado pelo Governo ou pelos Presidentes de qualquer das Casas legislativas. [5]

O controle de constitucionalidade jurisdicional no Brasil, após a Constituição de 1988, consagrou-se pela manifestação do controle difuso e do controle concentrado. No primeiro, o ato jurídico pode ser apreciado em sua compatibilidade com a Constituição por qualquer juiz, contudo, a decisão definitiva cabe ao Supremo Tribunal Federal, cuja missão é a guarda da Constituição (caput do art. 102 da CF). No segundo, realizado pelo Supremo, maneja-se por Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual, com efeito erga omnes, ou através do instituto da Ação Declaratória de Constitucionalidade, (a, I, art. 102 da CF) que visa apontar, de um lado, a presunção relativa de constitucionalidade de que goza toda lei ou ato normativo em seu nascedouro, e impugnar rápida e eficazmente um grande número de ações em que haja relevante controvérsia constitucional. Sobre a inconstitucionalidade por omissão, (§2°, art. 103 da CF) com efeitos ditados pela Constituição, resume-se em dar ciência ao órgão competente para editar a norma ou fixar prazos para a adoção das providências cabíveis, e, ao instituto da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ensina o Ministro Gilmar Mendes, que há de ser aceita nos casos que envolvam alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia de interpretação do judiciário que não envolva lei ou ato normativo inconstitucional. [6]

O controle preventivo de constitucionalidade cabe ao Poder Legislativo, no âmbito das suas comissões e, também, ao Executivo, através do Presidente da República, por meio do veto presidencial (§1º, art. 66 da CF) que será sempre motivado e poderá atingir o projeto no seu todo ou parcialmente. O veto, contudo, não é absoluto, apenas relativo e superável, desde que, em sessão conjunta das Casas, tomada dentro de trinta dias de seu recebimento, for rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em votação secreta (§4º, art. 66 da CF). Importante lembrar que qualquer espécie normativa que ingresse no ordenamento jurídico, deverá submeter-se a todo crivo de procedimentos previstos na Constituição Federal, que buscam evitar o ingresso de leis inconstitucionais e incompatíveis orçamentária e financeiramente.

Da análise do controle preventivo pelo Legislativo, no âmbito das suas comissões, tanto o Congresso Nacional como as suas Casas, constituirão comissões temáticas ou em razão de matéria; comissões permanentes, subcomissões, comissões especiais ou temporárias; comissões mistas, de inquérito ou representativas, permitindo dispor sobre matérias, instruindo-as e sistematizando-as, através dos seus respectivos Regimentos Internos, Regimento Comum e do processo legislativo constitucional. De sorte que, estabelecida a quantidade de comissões e suas respectivas vagas, fixa-se o número de membros de que cada representação partidária - partidos ou blocos parlamentares - teriam direito a ocupar, observado o princípio da proporcionalidade (§ 1º, art. 58 da CF), com base no resultado final das eleições proclamado pela justiça eleitoral, desconsidera-se, portanto, mudanças posteriores.

Assim, quanto maior for a representação de uma determinada agremiação partidária, maior será o número de representantes em cada comissão.[7] Evidencia-se, portanto, o controle político, aquele exercido pela maioria, primeiro para ocupar as presidências das comissões mais importantes, segundo, na distribuição de projetos mais relevantes, e terceiro, na tramitação de matérias de especial interesse das maiores bancadas e da bancada do Governo. De modo que o controle preventivo exercido pelo Poder Legislativo sofre um duro golpe, visto que os interesses partidários, ou particulares, sobrepõem-se ao interesse público, preterido das grandes decisões, destarte, ao mesmo tempo que há um jogo democrático onde muitas vezes, matérias absolutamente inconstitucionais têm seu crivo maculado, à medida em que não são respeitados os pressupostos constitucionais. Toma-se como exemplo a apreciação de Medidas Provisórias; uma vez que a urgência e relevância, a rigor, não são observadas, nem pelas comissões mistas, que quase nunca se instalam, em total dissonância com o art. 62 da Constituição Federal, nem pelos plenários das Casas, que a aprovam sem ao menos abrir o debate no âmbito das comissões de justiça. Portanto, desfalece a democracia a míngua de parcos interesses, tendo em vista a urgência de reformas que Estado precisa.

Como foi citado, o primeiro instituto, a Medida Provisória, com força de lei, tem eficácia imediata à publicação e tem prazo de vigência de sessenta dias prorrogáveis por mais sessenta de acordo com o §3º do art. 62 da Constituição Federal. O segundo, é a dispensa da competência do plenário, de ambas as Casas, para a apreciação de matérias. A Constituição de 88 fortaleceu ainda mais o papel das comissões, que passaram a apreciar conclusivamente proposições (§2º, art. 58 da CF, e art. 24 do RICD, e II, art. 91 do RISF), portanto, poderá as comissões, apreciar terminativamente, como se diz no Senado, ou conclusivamente, termo usado na Câmara, tratados ou acordos internacionais, determinados projetos de lei ordinária, projetos de resolução, e, também, a suspensão no todo ou em parte de lei declarada inconstitucional. O terceiro dispositivo que visa encurtar a tramitação das proposições são as urgências regimental e a constitucional (I, II e III, art. 336 do RISF e §2º, art. 157 do RICD e §1º, art. 64 da CF) visto que é lícito, além das Casas legislativas, ao Presidente da República solicitar urgência na apreciação de projetos de sua iniciativa. Este instituto confere tramitação concomitante nas comissões e um prazo mais curto para a deliberação final em plenário da seguinte maneira: sendo anunciada a discussão e votação na Ordem do Dia, com parecer ou sem ele, o Presidente, no âmbito de suas competências regimentais, convocará os relatores em substituição a cada comissão que perdeu a oportunidade de se pronunciar. Ora, se eventualmente o Presidente avocar um relator e este não estiver presente, pode designar ad-hoc qualquer outro membro do colegiado para proferir o parecer pendente da comissão, não obstante, proferir verbalmente seu voto, mesmo que o mesmo não tenha nenhum conhecimento da matéria em face do mérito que ela enseja.

Observe, pois, que são diversos recursos que o Legislativo dispõe por meio das comissões para equilibrar o exercício do poder - como propor a sustação de atos normativos do Poder Executivo, promover a fiscalização financeira e orçamentária da União e, através do princípio de freios e contrapesos entre os Poderes da República, cabe às comissões convocar Ministro de Estado, vide III art. 58 do CF e, processar todos os mencionados no II, art. 52 da CF.[8] Importante registrar que, via de regra não pode uma comissão apreciar matéria inserida na área de atividade de outro colegiado, como por exemplo, é competência das comissões de justiça, de ambas as Casas, proferirem pareceres sobre a constitucionalidade e juridicidade de projetos, além de se manifestarem sobe a admissibilidade de proposta de emendas à Constituição, intervenção federal, perda de mandato de parlamentares nas hipóteses do inciso I, II e IV do art. 55 da CF, entre outras prerrogativas inerentes. É vedado, portanto, outra comissão instruir matérias emitindo esse tipo de parecer, exclusivo das comissões de justiça, por isso mesmo a relevância de seu parecer enquanto instância de instrução processual legislativa.

Conclui-se que, embora o legislador, por um lado, no afã de descongestionar o processo legislativo, por outro, permitiu o controle político em detrimento do controle preventivo de constitucionalidade, tanto pelo Poder Legislativo, como pelo Poder Executivo, ou seja, é possível que uma lei seja sancionada e passe a viger sem nunca ter-se discutido sua adequação jurisdicional à Carta Maior, e pior, evidencia-se, portanto, a provável manipulação política dos agentes públicos, que a fim de se acatarem leis inconstitucionais para beneficiar interesses alguns de setores da sociedade, permitem-se manter a brecha legislativa.

Hoje assiste-se ao atropelamento do ordenamento jurídico e dos princípios do Estado Democrático de Direito, estabelece-se, contudo, a perda do poder legitimado pela democracia às minorias. Resta ao Judiciário o dever de dirimir questões e solucionar controvérsias suscitadas pelo legislativo por comissão ou omissão das garantias fundamentais aos direitos subjetivos, à medida que são inúmeras as ações de inconstitucionalidade levadas ao Supremo, comprometendo ainda mais o desempenho da alta Corte, atada à discussão da constitucionalidade de leis mal constituídas, haja vista a pletora de proposituras em pauta referentes aos institutos da ADI, ADC, ADPF ou MS. Destarte, evidencia-se uma troca de papeis, pois não cabe ao Judiciário legislar. Ao Poder Legislativo, portanto, é imprescindível cumprir com eficiência sua função precípua: o dever de elaborar leis de acordo com o devido processo legal e sua relevância para o interesse público em conformidade com a Carta Federal, a fim de que, com tudo isso, os anseios dos democraticamente representados possam ser alcançados.

[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12ª ed. Atlas Jurídico, 2002, p. 578
[2] MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais. 2. Ed. São Paulo: Atlas, 2003
[3] CAPPELLETTI, Meuro. Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1984, p. 599.
[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 288
[5] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª ed. Atlas Jurídico, 2006, p. 664
[6] MENDES, Gilmar Ferreira e Ives Gandra da Silva Martins. Controle concentrado de constitucionalidade. 2ª ed. Editora Saraiva, 2005, p105.
[7] CARNEIRO, André Corrêa de Sá; Luiz Cláudio Alves dos Santos, Miguel Gerônimo da Nóbrega Netto. Curso de Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Brasília: Vestcon, 2006, p. 116.
[8] CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal. Inciso II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade (art. 52 da Constituição Federal de 1988).

O Estado de Direito: Origens e desenvolvimento histórico


O Estado de Direito: Origens e desenvolvimento histórico
Artigo apresentado no curso de pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional realizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP como requisito para aprovação na disciplina de Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional.
Professor: Inocêncio Mártires Coelho
Brasília / 2008

A História registra que Aristóteles em sua célebre afirmação “o homem é naturalmente um animal político” foi o primeiro a defender a idéia do impulso associativo natural, mais tarde foi seguido por Cícero em Roma e, na idade medieval, por São Tomás de Aquino. Afinal, onde quer que esteja o homem, seja qual for a época, ele sempre é encontrado em estado de conveniência com outros, por mais rude e selvagem que possa ser sua origem. Essa é segundo Reis Friede a condição essencial de vida, pois que somente na convivência de outros é que o homem pode satisfazer suas necessidades[1]. Portanto, é natural que, desejoso de viver em comunidade, o homem procure estabelecer associações a partir de algum tipo de identidade social, sendo, pois, inerente ao gênero humano a aproximação com aquele que julga mais próximo através da vinculação social.

Ensina Dalmo Dallari que a origem e formação do Estado suscitam duas indagações fundamentais, uma a respeito da época do seu aparecimento e outra relativa aos motivos que determinaram o seu surgimento. Muitos autores entendem que o termo Estado foi empregado pela primeira vez em “O príncipe” de Maquiavel em 1513, porém usado sempre como denominação de cidades. A expressão acabou sendo admitida em alguns textos franceses, ingleses e alemães no século XVII, desde então este termo passou a indicar propriedade às sociedades políticas, que, com autoridade superior, fixariam regras de convivência entre seus membros de tal modo que a questão não se reduziria apenas ao nome de uma cidade. Portanto, de acordo com a abordagem teórica do termo, podem ser deduzidas a três teorias: o Estado e a sociedade sempre existiram, a sociedade sempre existiu sem o Estado e, como já foi dito, há autores que só admitem como Estado uma sociedade política dotada de certas características muito bem definidas.[2]

As causas do aparecimento dos Estados segundo Dallari levam em consideração questões fundamentais, como a formação originária e a formação derivada, esta a partir de Estados preexistentes e aquela de agrupamentos humanos ainda não integrados. As causas determinantes da origem do Estado se agrupam em origem familiar, em atos de força e violência e em origens econômicas Por meio de fracionamento ou pela união de Estados. Não obstante, conclui Dallari, o mais importante é que o novo Estado tenha viabilidade, consiga agir com independência e procure manter, internamente, uma ordem jurídica eficaz.

A evolução histórica do Estado não pode dispor cronologicamente de ordem sucessiva apoiada na história, todavia, para efeitos sistemáticos, observam-se certos fenômenos sociais e aspectos particulares que apontam originalmente os Estados e suas singularidades. Relacionando o particular com o geral é, para tanto, importante lembrar que o Estado particular não é um fenômeno isolado, pois, depende de fatores históricos inseridos no contexto temporal, sistematizados em tipos empíricos e compreendidos em fases. Assim, com pequenas variações, a maioria dos autores divide esses momentos em Estado Antigo, Grego, Romano, Medieval e Moderno. Contudo, embora haja grande diversidade de opiniões em face à variedade de posições, destacam-se quatro características essenciais do Estado: a soberania, o território, o povo e a finalidade. É claro que a noção de ordem jurídica está implícita, haja vista que em termos objetivos, dento de um conceito contemporâneo, podemos considerar o Estado como toda associação ou grupo de pessoas fixado sobre determinado território, dotado de poder soberano, politicamente organizado, que em geral, guarda a noção de soberania[3].

Essa concepção do Estado como pessoa jurídica representa um grande avanço da disciplina jurídica de interesse coletivo, estabelecendo, através de critérios formais, limitações ao poder pela noção de personalidade do Estado. Tal origem pode ser atribuída aos contratualistas, todavia, seriam necessários alguns séculos para que se admitissem o tratamento jurídico como fundamental a coletividade. Somente no séc. XX, através de notáveis publiscistas alemães, é que se iria completar o desenvolvimento de idéias até então consideradas políticas como objeto da dogmática jurídica, conquanto outras teorias afirmam a existência real do Estado como organismo físico, comparando-o a uma pessoa - visão de cunho científico – com grande número de adeptos que procuraram consolidá-la, havia também inúmeros opositores, sobretudo os que perfilaram o realismo jurídico.

O Professor Inocêncio Mártires Coelho citando Böckenförde assenta que na organização do Estado e a regulação das atividades obedecem a princípios racionais, dentre outros, o da igualdade jurídica, da garantia da propriedade, da liberdade civil e da representação popular no Poder Legislativo, decorrente, portanto, do reconhecimento dos direitos básicos da cidadania e de um governo responsável. Contudo, continua o Professor Inocêncio, o surgimento do Estado de Direito ocorreu no momento em que se conseguiu pôr freios à atividade estatal por meio da lei, assim, embora um conceito polêmico orientado contra o Estado absolutista, o Estado de Direito se caracteriza, em essência, como aquele submetido ao direito, cujo poder e atividade estão regulados pela lei e, nesse contexto, como expressão de vontade geral.

Portanto, a noção básica de Estado de Direito, embora inicialmente forjada no século XVIII pela burguesia, com objetivo de se oporem ao absolutismo, acabou por romper, no início do século XIX, a última fronteira entre as concepções democráticas de uma simples forma de governo com um autêntico regime político. Desse modo, restaria em todos os casos, a plena sujeição do Estado ao conjunto normativo que o mesmo edita para a completa efetivação do regime democrático. Nada obstante, sob este ângulo, somente o fato de o Estado se submeter à lei não seria suficiente para a plena caracterização do regime democrático, posto que, não estivesse assegurada a necessária submissão do Estado à vontade popular e, aos fins propostos pelos cidadãos, surgiria em resposta, logo no início do século XX, a concepção primeira do denominado Estado Democrático de Direito.[4]

O Estado de Direito Social é resultado de uma longa transformação por que passou o Estado liberal clássico quando incorpora direitos sociais além dos direitos civis. Um modelo que nasce em meio à contradição histórica, visto que resulta de três experiências políticas e institucionais diferentes para a produção de três documentos diversos entre si, porém complementares e consonantes, são a Revolução Russa de 1917 (Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado de 1918), a reconstrução da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial (a Constituição de Weimar de 1919) e a Revolução Mexicana e suas conseqüências. Portanto definem-se, constitucionalmente, os direitos sociais e trabalhistas como fundamentais da pessoa humana, sob a proteção do Estado, ou seja, o Estado como provedor de garantias institucionais aos direitos sociais e trabalhistas. Entretanto o Estado social permaneceu limitado e definido como um simples modelo avançado do Estado Capitalista, destarte, não se confirmou como real alternativa ao liberalismo que se propusera substituir, gerando uma forte colisão entre o protecionismo econômico e o desenvolvimento dos direitos sociais. Assim, o Estado Social nasce na década de 1920 e tem seu término selado nas décadas de 70 e 80. Paulo Bonavides ilustra bem esse conceito: quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado.[5]

Importante frisar que o Estado de Direito Social não se confunde com o Estado democrático porque esta modalidade de atuação social foi marcante da Alemanha nazista, na Itália fascista, no Brasil getulista, bem como na Inglaterra de Churchill e na América de Roosevelt. Ou seja, o Estado de direito social tanto pode se adaptar ao regime democrático, quanto em regimes totalitários. Dessa forma, a passagem para o Estado Social de Direito, pretende a instauração de uma sociedade ou Estado do bem-estar. Destarte, o conceito de direitos sociais, direitos fundamentais do homem, consagradas como fundamento do Estado Democrático de Direito (IV, art. 1º da CF) implica em verdadeiras liberdades positivas com a finalidade de melhorar as condições de vida dos hipossuficientes. No que tange ao alcance desses objetivos, a Constituição Federal proclama como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção a maternidade, e à infância, a assistência aos desamparados (art. 6º da CF).[6]

Por fim, não se pode negar que o Estado Social foi um passo muito importante para a evolução da sociedade, entretanto, a fragilidade desse tipo de Estado implica em mero paternalismo que se encontra imiscuído em uma estrutura política concentrada de poder, autocrática, ou mesmo cerceadora de legitimidade de poder. Todavia a estrutura política do Estado de Direito deve assentar-se sobre aspectos do liberalismo (controle da autoridade e manutenção dos direitos fundamentais do homem), do socialismo (busca da igualdade material e da justiça social) e da soberania (elemento democrático do poder).[7] Para tanto, o aspecto principal do Estado Democrático constitucional residiria na distribuição e nos mecanismos de controle do poder político, fazendo com que este seja realmente submetido aos seus destinatários, ou seja, ao povo. Define-se o Estado Democrático de Direito como sendo a exigência de reger-se por normas democráticas, eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais.[8]

[1] FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do Estado. 3ª ed. Forense Universitária. 2006, p. 32
[2] DALLARI, Dalmo. Elemento da Teoria Geral do Estado. 26ª ed. Saraiva. 207, p. 51 e 52
[3] DALLARI, Dalmo. Elemento da Teoria Geral do Estado. 26ª ed. Editora Saraiva. 207, p. 59 a 64
[4] FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do Estado. 3ª ed. Forense Universitária. 2006, p. 244
[5] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p 186.
[6] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: 20ª ed. Atlas Jurídico, 2006, p. 182
[7] SILVA, Ênio Morais. O Estado Democrático de Direito. Revista de Informações Legislativas. Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005, p. 225
[8] MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais. São Paulo: ed. Atlas, 2000, p. 43

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A evolução da gestão pública no Brasil

Artigo apresentado no curso de pós-graduação lato sensu em Administração Pública na FGV – Fundação Getúlio Vargas, na disciplina de Governo e Administração Pública
Professor: Paulo Emílio Matos Martins

Wolfgang Böckenförde assenta que na organização do Estado e a regulação das atividades obedecem a princípios racionais, dentre outros o da igualdade jurídica, da garantia da propriedade, da liberdade civil e da representação popular no Poder Legislativo. Contudo, o surgimento do Estado de Direito ocorreu no momento em que se conseguiu pôr freios à atividade estatal por meio da lei, assim, embora um conceito polêmico orientado contra o absolutismo, o Estado de Direito se caracteriza, em essência, como aquele submetido ao direito, cujo poder e atividade estão regulados pela lei e, nesse contexto, como expressão de vontade geral. Portanto, a noção básica de Estado de Direito, embora inicialmente forjada no século XVIII pela burguesia, acabou por romper, no início do século XIX a última fronteira entre as concepções democráticas de uma simples forma de governo com um autêntico regime político. Desse modo, restaria em todos os casos, a plena sujeição do Estado ao conjunto normativo que o mesmo edita para a completa efetivação do regime democrático. Nada obstante, sob este ângulo, somente o fato de o Estado se submeter à lei não seria suficiente para a plena caracterização do regime democrático, posto que, não estivesse assegurada a necessária submissão do Estado à vontade popular e, aos fins propostos pelos cidadãos, surgiria em resposta, logo no início do século XX, a concepção primeira do denominado Estado Democrático de Direito.[1]

Para melhor compreensão e avaliação das políticas públicas implementadas por um governo, é fundamental a compreensão da concepção de Estado e de política que sustentam tais ações e programas de intervenção. O conceito de políticas públicas abrange diversas funções sociais possíveis de serem exercidas pelo Estado, tais como saúde, educação, previdência, moradia, saneamento básico, qualificação profissional, entre outras. Contudo para que sejam implementadas é necessário definir e compreender melhor a estrutura institucional do Estado, ou seja, seu conjunto de órgãos, autarquias, além do processo de financiamento e gestão. Um primeiro olhar sobre a estrutura social brasileira pode nos fazer pensar que o Estado investe muito pouco na área, dado que o grau de desigualdade de renda do país. Entretanto, antes disso, dados revelam o déficit histórico de cidadania em um país que viveu sob regime escravo por quatro séculos.

Ponto fulcral dentre todos analistas é que quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accontability. Avanços em valores tais como igualdade, dignidade humana, participação e representatividade, por exemplo, são indicadores positivos de ascensão ao Estado Democrático de Direito. De outro modo, a inexistência de controle e penalidades aplicáveis ao serviço público, enfraquece o ideal democrático do governo pelo povo, posto que, o exercício da accontability é determinado pela qualidade das relações entre governo e cidadãos, entre burocracia e clientelas. Portanto, o desenvolvimento da consciência popular é a primeira pré-condição para uma democracia verdadeiramente participativa. “A falta de base popular faz da democracia brasileira uma democracia formal, cujo traço distintivo é a aceitação passiva do domínio do Estado”.[2] Em lugar de participar de alguma organização, as pessoas preferem que o Estado as defenda e proteja seus interesses.

Somente a partir de 1930 é que são implementadas, pela primeira vez no Brasil, políticas de gestão pública, não apenas como perspectivas à administração, mas como técnica inspirada no modelo burocrático da autoridade racional-legal weberiana, que se distinguia pela abordagem estruturalista da racionalidade administrativa, pela adequação dos meios aos fins, e não a um modelo padrão, definido conceitualmente, ou seja, apenas uma esquematização de princípios, tais como: o funcionário é capacitado através de avaliação ou seleção; a autoridade, a hierarquia e a subordinação são regras que representa o ponto principal da doutrina, e a lei é o ponto de equilíbrio último. Destarte, Getúlio Vargas propõe mudança fundamental na reforma da organização administrativa pré-burocrática, visto que, o paternalismo e o coronelismo - herança das antigas oligarquias da República Velha, 1889 a 1930 – que recuou em virtude da instituição da meritocracia.

Os direitos políticos e civis foram concedidos entre 1930 e 1937, destacando-se aí o sufrágio universal com a concessão do direito de voto à mulher, mas no período ditatorial, entre 1937 e 1945 foram suspensos. No que se refere aos direitos sociais, em 1930 é criado o Ministério do Trabalho, que elaborou toda a legislação social e trabalhista do país, sendo a mais importante a Consolidação das leis do Trabalho de 1943, vigente até os dias de hoje. Em 1932 ficou decretada a jornada de oito horas para os setores da indústria e comércio, foi regulamentado o trabalho dos menores, criou-se a carteira de trabalho - documento de identidade do trabalhador, além do salário mínimo, adotado a partir de 1940.

Em 1938 Vargas criou o órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República que o auxiliaria no processo de reforma burocrática, o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), que foi responsável pela profissionalização das carreiras do serviço público. A administração pública ganhou foros de instrumentalidade de governo. O novo modelo de Estado caracterizava-se por vasto poder de intervenção na ordem econômica e social. Não obstante, embora todas essas mudanças representassem avanços na gestão da coisa pública, o caráter patrimonialista, viés autoritário dessa modernização burocrática, de centralismo decisório, tanto político, como administrativo, privilegiariam ações privadas em detrimento das públicas, ainda que muitas ações públicas fossem implantadas, poucas foram implementadas.

De 1956 a 61, no período JK, questões relacionadas com a modernização da gestão pública continuavam vigentes, porém, centradas em outros objetivos, a modernização passou pela criação de organizações paralelas, destinadas a atender de forma mais eficiente o Plano de Metas, cujo lema era “cinqüenta anos de desenvolvimento em cinco anos de governo”. O Plano consistia no investimento em áreas prioritárias para o desenvolvimento econômico, principalmente, infra-estrutura - rodovias, hidrelétricas, aeroportos - e indústria. A concepção do Estado-empresa traria efeitos colaterais modernizadores no aparelho estatal, na medida em que o planejamento passou a ser a função chave desse processo. Todavia, de Jânio a Jango, entre 1961 a 64, as tensões socias dominaram o cenário político, embora João Goulart criasse em 1963 uma Comissão com objetivo de implementar uma reforma administrativa de governo parlamentarista, predominava portanto a ambivalência na administração pública, que se subordinaria ao golpe militar de 31 de março de 1964. O período caracterizou-se como um tempo de “situações flutuantes”.[3]

A democracia populista de Vargas a Kubitschek seguiu-se a ditadura do Estado Novo e precedeu a ditadura militar. Semelhante ao governo Vargas, os militares que governaram o país, propuseram reformas administrativas baseadas no modelo racional-legal de Weber, com todas aquelas características, tendo como base legal o Decreto-Lei nº 200, que apontava à descentralização das atividades do setor público, a expansão das empresas estatais e baseava-se em mecanismos de gestão do setor privado. Neste período foi criado o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que unificava o sistema com exceção do funcionalismo público civil e militar, também o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), que funcionava como seguro desemprego além de principal fonte de financiamento das políticas de desenvolvimento urbano nos setores de habitação, saneamento básico e infra-estrutura, e o BNH (Banco Nacional da Habitação), cujo objetivo era o financiamento de casa própria para os trabalhadores. Finalmente em 1971, é criado o FUNRURAL (Fundo de Assistência Rural), previdência do trabalhador rural formada com recursos de impostos sobre produtores rurais e das folhas de pagamento dos trabalhadores. No governo Figueiredo, entretanto, o PND (Programa Nacional de Desburocratização), cujo objetivo era simplificar o funcionamento do aparelho burocrático do Estado, não logrou o que se pretendia. Posto que, nos governos autoritários a soberania popular é subestimada pela arrogância dos tecnocratas, que se dão ao direito de identificar as necessidades, as prioridades, as alternativas e as escolhas políticas, mantendo-se isolados em relação à população.[4]

O período de 1985 a 94 marcou-se por uma paralisia geral na gestão pública, entretanto, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou a participação da sociedade na gestão das políticas públicas, que vem sendo gradativamente implementada. Conselhos, orçamento participativo e plebiscito são exemplos dessa abertura.[5] Contudo, no exercício de 1986, o Governo Federal convivia com uma série de problemas de natureza administrativa que dificultavam a adequada gestão dos recursos públicos e a preparação do orçamento unificado. Passaria a vigorar em 1987, o SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira) desse modo, a Secretaria do Tesouro Nacional definiu e desenvolveu um sistema para suprir o Governo Federal de um instrumento moderno e eficaz no controle e acompanhamento dos gastos públicos.

Após vinte anos de ditadura, o Presidente Fernando Collor de Mello, eleito diretamente pelo voto popular, centralizou suas decisões nas pessoas mais próximas ao Palácio do Planalto conhecidas como a “República das Alagoas”. Collor de Mello distanciou-se das instituições e seu legado messiânico terminou com um processo de impeachment. Sua gestão marcou tragicamente a administração pública por meio de uma reestruturação sem critérios racionais de controle, o Plano Collor promoveu uma drástica redução na estrutura organizacional, como também no quadro funcional do Poder Executivo, aliada a essa manobra, acentuou-se o processo de privatizações já iniciada em 1981. Em verdade, essa tentativa de reforma desestruturou todo aparato administrativo e agravou a ineficiência estatal. Dessa forma, conclui-se que a baixa contribuição dos esforços de reformas da administração pública e a precariedade dos controles formais ao longo da história acuam a accontable do setor público. Ademais a existência de sistemas partidários pouco estruturados, a alta volatilidade de eleitores e partidos, além de temas políticos pouco definidos e reversões políticas súbitas, a eficácia da accontability eleitoral torna-se bastante fragilizada. A análise de Campos sobre o processo eleitoral brasileiro é ainda mais desalentadora, uma vez que o caráter episódico das eleições se agrava com o fato de que muitos eleitores barganham os seus votos.[6]

Na gestão FHC foram definidas mudanças administrativas através do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que encontrava justificativa numa proposta de governo “socialdemocrata”, que criticava a incapacidade do Estado de atender a crise iniciada nos anos 80. Reconhecia, no entanto, o fenômeno da globalização, fomentado pela competição entre países. FHC tornou obsoleta a administração pública e burocrática, tendo em vista as propostas de reformas estruturais nas finanças, na previdência e no sistema institucional-legal, destaca-se nesse contexto a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, mediante ações em que se previnam riscos e corrijam desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas. Entretanto, embora com aspectos sociais, as políticas públicas nesta gestão tiveram a uma modelagem técnico-burocrática de gestão social idealizada.[7] A meta era reduzir o tamanho do Estado, com isso, instituir o estado-mínimo. Neste caso o valor político accontability enfraquece-se, visto que o desenvolvimento da capacidade dos cidadãos de agir na definição das metas coletivas de sua sociedade é baixa, a “pobreza política” decorre da expectativa do povo na condição de tutelado e do Estado como tutor, uma vez que as pessoas optam por esperar que o Estado defenda e proteja seus interesses não organizados[8].

Apesar dos esforços de mudanças no Estado, quanto a seu aparelho burocrático, desde 1930, elas ainda estão por acontecer. A recuperação dos valores fundamentais, tais como a cidadania, a liberdade e a justiça social é a saída para a crise política, pois o isolamento em que os cidadãos e os legisladores mantiveram-se por duas décadas de ditadura congelou os ânimos da sociedade civil, pois como menciona Campos, “a impotência política deriva da falta de organização da população”. Nesse cenário de fragmentação cívica e ética das instituições sociais, a distância entre a democracia no país e o ideal de um governo pelo povo, para o povo e com o povo, aponta para o caminho tortuoso das convulsões sociais. Quanto à gestão pública, embora os governos ainda reverenciem a meritocracia, critérios particularistas, clientelistas, dominam as indicações para cargos de confiança. O serviço público ainda continua altamente vulnerável à politicagem, sobretudo na esfera federal, os empregos públicos funcionam como moeda de troca no jogo político. O maior problema é que o sistema de incentivos generalizados faz as organizações incapazes de estimular desempenhos mais adequados e impotentes para punir desempenhos abaixo do nível desejável. Há, portanto, uma relação de casualidade entre desenvolvimento político e a competente vigilância no serviço público, assim, quanto menos amadurecida a sociedade, menos provável que ela se preocupe com a accontability.[9]

[1] FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do Estado. 3ª ed. Forense Universitária. 2006, p. 244
[2] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): p. 36 fev/abr 1990
[3] MARTINS, Paulo Emílio Matos e PIERANTI, Octavio Penna, Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro. P. 117 ed. FGV, 2006
[4] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): p. 41 fev/abr 1990
[5] PINHO, José Antonio Gomes de and SACRAMENTO, Ana Rita Silva. ‘Accountability’: já podemos traduzi-la para o português?. Rev. Adm. Pública [online]. 2009, vol.43, n.6, pp. 1354. ISSN 0034-7612.
[6] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): fev/abr 1990
[7] MARTINS, Paulo Emílio Matos e PIERANTI, Octavio Penna, Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro. P. 122 ed. FGV, 2006
[8] PINHO, José Antonio Gomes de and SACRAMENTO, Ana Rita Silva. ‘Accountability’: já podemos traduzi-la para o português?. Rev. Adm. Pública [online]. 2009, vol.43, n.6, pp. 1343-1368. ISSN 0034-7612.
[9] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): pp. 39 a 48 fev/abr 1990