Artigo apresentado no curso de pós-graduação lato sensu em Administração Pública na FGV – Fundação Getúlio Vargas, na disciplina de Governo e Administração Pública
Professor: Paulo Emílio Matos Martins
Wolfgang Böckenförde assenta que na organização do Estado e a regulação das atividades obedecem a princípios racionais, dentre outros o da igualdade jurídica, da garantia da propriedade, da liberdade civil e da representação popular no Poder Legislativo. Contudo, o surgimento do Estado de Direito ocorreu no momento em que se conseguiu pôr freios à atividade estatal por meio da lei, assim, embora um conceito polêmico orientado contra o absolutismo, o Estado de Direito se caracteriza, em essência, como aquele submetido ao direito, cujo poder e atividade estão regulados pela lei e, nesse contexto, como expressão de vontade geral. Portanto, a noção básica de Estado de Direito, embora inicialmente forjada no século XVIII pela burguesia, acabou por romper, no início do século XIX a última fronteira entre as concepções democráticas de uma simples forma de governo com um autêntico regime político. Desse modo, restaria em todos os casos, a plena sujeição do Estado ao conjunto normativo que o mesmo edita para a completa efetivação do regime democrático. Nada obstante, sob este ângulo, somente o fato de o Estado se submeter à lei não seria suficiente para a plena caracterização do regime democrático, posto que, não estivesse assegurada a necessária submissão do Estado à vontade popular e, aos fins propostos pelos cidadãos, surgiria em resposta, logo no início do século XX, a concepção primeira do denominado Estado Democrático de Direito.[1]
Para melhor compreensão e avaliação das políticas públicas implementadas por um governo, é fundamental a compreensão da concepção de Estado e de política que sustentam tais ações e programas de intervenção. O conceito de políticas públicas abrange diversas funções sociais possíveis de serem exercidas pelo Estado, tais como saúde, educação, previdência, moradia, saneamento básico, qualificação profissional, entre outras. Contudo para que sejam implementadas é necessário definir e compreender melhor a estrutura institucional do Estado, ou seja, seu conjunto de órgãos, autarquias, além do processo de financiamento e gestão. Um primeiro olhar sobre a estrutura social brasileira pode nos fazer pensar que o Estado investe muito pouco na área, dado que o grau de desigualdade de renda do país. Entretanto, antes disso, dados revelam o déficit histórico de cidadania em um país que viveu sob regime escravo por quatro séculos.
Ponto fulcral dentre todos analistas é que quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accontability. Avanços em valores tais como igualdade, dignidade humana, participação e representatividade, por exemplo, são indicadores positivos de ascensão ao Estado Democrático de Direito. De outro modo, a inexistência de controle e penalidades aplicáveis ao serviço público, enfraquece o ideal democrático do governo pelo povo, posto que, o exercício da accontability é determinado pela qualidade das relações entre governo e cidadãos, entre burocracia e clientelas. Portanto, o desenvolvimento da consciência popular é a primeira pré-condição para uma democracia verdadeiramente participativa. “A falta de base popular faz da democracia brasileira uma democracia formal, cujo traço distintivo é a aceitação passiva do domínio do Estado”.[2] Em lugar de participar de alguma organização, as pessoas preferem que o Estado as defenda e proteja seus interesses.
Somente a partir de 1930 é que são implementadas, pela primeira vez no Brasil, políticas de gestão pública, não apenas como perspectivas à administração, mas como técnica inspirada no modelo burocrático da autoridade racional-legal weberiana, que se distinguia pela abordagem estruturalista da racionalidade administrativa, pela adequação dos meios aos fins, e não a um modelo padrão, definido conceitualmente, ou seja, apenas uma esquematização de princípios, tais como: o funcionário é capacitado através de avaliação ou seleção; a autoridade, a hierarquia e a subordinação são regras que representa o ponto principal da doutrina, e a lei é o ponto de equilíbrio último. Destarte, Getúlio Vargas propõe mudança fundamental na reforma da organização administrativa pré-burocrática, visto que, o paternalismo e o coronelismo - herança das antigas oligarquias da República Velha, 1889 a 1930 – que recuou em virtude da instituição da meritocracia.
Os direitos políticos e civis foram concedidos entre 1930 e 1937, destacando-se aí o sufrágio universal com a concessão do direito de voto à mulher, mas no período ditatorial, entre 1937 e 1945 foram suspensos. No que se refere aos direitos sociais, em 1930 é criado o Ministério do Trabalho, que elaborou toda a legislação social e trabalhista do país, sendo a mais importante a Consolidação das leis do Trabalho de 1943, vigente até os dias de hoje. Em 1932 ficou decretada a jornada de oito horas para os setores da indústria e comércio, foi regulamentado o trabalho dos menores, criou-se a carteira de trabalho - documento de identidade do trabalhador, além do salário mínimo, adotado a partir de 1940.
Em 1938 Vargas criou o órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República que o auxiliaria no processo de reforma burocrática, o DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), que foi responsável pela profissionalização das carreiras do serviço público. A administração pública ganhou foros de instrumentalidade de governo. O novo modelo de Estado caracterizava-se por vasto poder de intervenção na ordem econômica e social. Não obstante, embora todas essas mudanças representassem avanços na gestão da coisa pública, o caráter patrimonialista, viés autoritário dessa modernização burocrática, de centralismo decisório, tanto político, como administrativo, privilegiariam ações privadas em detrimento das públicas, ainda que muitas ações públicas fossem implantadas, poucas foram implementadas.
De 1956 a 61, no período JK, questões relacionadas com a modernização da gestão pública continuavam vigentes, porém, centradas em outros objetivos, a modernização passou pela criação de organizações paralelas, destinadas a atender de forma mais eficiente o Plano de Metas, cujo lema era “cinqüenta anos de desenvolvimento em cinco anos de governo”. O Plano consistia no investimento em áreas prioritárias para o desenvolvimento econômico, principalmente, infra-estrutura - rodovias, hidrelétricas, aeroportos - e indústria. A concepção do Estado-empresa traria efeitos colaterais modernizadores no aparelho estatal, na medida em que o planejamento passou a ser a função chave desse processo. Todavia, de Jânio a Jango, entre 1961 a 64, as tensões socias dominaram o cenário político, embora João Goulart criasse em 1963 uma Comissão com objetivo de implementar uma reforma administrativa de governo parlamentarista, predominava portanto a ambivalência na administração pública, que se subordinaria ao golpe militar de 31 de março de 1964. O período caracterizou-se como um tempo de “situações flutuantes”.[3]
A democracia populista de Vargas a Kubitschek seguiu-se a ditadura do Estado Novo e precedeu a ditadura militar. Semelhante ao governo Vargas, os militares que governaram o país, propuseram reformas administrativas baseadas no modelo racional-legal de Weber, com todas aquelas características, tendo como base legal o Decreto-Lei nº 200, que apontava à descentralização das atividades do setor público, a expansão das empresas estatais e baseava-se em mecanismos de gestão do setor privado. Neste período foi criado o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que unificava o sistema com exceção do funcionalismo público civil e militar, também o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), que funcionava como seguro desemprego além de principal fonte de financiamento das políticas de desenvolvimento urbano nos setores de habitação, saneamento básico e infra-estrutura, e o BNH (Banco Nacional da Habitação), cujo objetivo era o financiamento de casa própria para os trabalhadores. Finalmente em 1971, é criado o FUNRURAL (Fundo de Assistência Rural), previdência do trabalhador rural formada com recursos de impostos sobre produtores rurais e das folhas de pagamento dos trabalhadores. No governo Figueiredo, entretanto, o PND (Programa Nacional de Desburocratização), cujo objetivo era simplificar o funcionamento do aparelho burocrático do Estado, não logrou o que se pretendia. Posto que, nos governos autoritários a soberania popular é subestimada pela arrogância dos tecnocratas, que se dão ao direito de identificar as necessidades, as prioridades, as alternativas e as escolhas políticas, mantendo-se isolados em relação à população.[4]
O período de 1985 a 94 marcou-se por uma paralisia geral na gestão pública, entretanto, a Constituição Federal de 1988 institucionalizou a participação da sociedade na gestão das políticas públicas, que vem sendo gradativamente implementada. Conselhos, orçamento participativo e plebiscito são exemplos dessa abertura.[5] Contudo, no exercício de 1986, o Governo Federal convivia com uma série de problemas de natureza administrativa que dificultavam a adequada gestão dos recursos públicos e a preparação do orçamento unificado. Passaria a vigorar em 1987, o SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira) desse modo, a Secretaria do Tesouro Nacional definiu e desenvolveu um sistema para suprir o Governo Federal de um instrumento moderno e eficaz no controle e acompanhamento dos gastos públicos.
Após vinte anos de ditadura, o Presidente Fernando Collor de Mello, eleito diretamente pelo voto popular, centralizou suas decisões nas pessoas mais próximas ao Palácio do Planalto conhecidas como a “República das Alagoas”. Collor de Mello distanciou-se das instituições e seu legado messiânico terminou com um processo de impeachment. Sua gestão marcou tragicamente a administração pública por meio de uma reestruturação sem critérios racionais de controle, o Plano Collor promoveu uma drástica redução na estrutura organizacional, como também no quadro funcional do Poder Executivo, aliada a essa manobra, acentuou-se o processo de privatizações já iniciada em 1981. Em verdade, essa tentativa de reforma desestruturou todo aparato administrativo e agravou a ineficiência estatal. Dessa forma, conclui-se que a baixa contribuição dos esforços de reformas da administração pública e a precariedade dos controles formais ao longo da história acuam a accontable do setor público. Ademais a existência de sistemas partidários pouco estruturados, a alta volatilidade de eleitores e partidos, além de temas políticos pouco definidos e reversões políticas súbitas, a eficácia da accontability eleitoral torna-se bastante fragilizada. A análise de Campos sobre o processo eleitoral brasileiro é ainda mais desalentadora, uma vez que o caráter episódico das eleições se agrava com o fato de que muitos eleitores barganham os seus votos.[6]
Na gestão FHC foram definidas mudanças administrativas através do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que encontrava justificativa numa proposta de governo “socialdemocrata”, que criticava a incapacidade do Estado de atender a crise iniciada nos anos 80. Reconhecia, no entanto, o fenômeno da globalização, fomentado pela competição entre países. FHC tornou obsoleta a administração pública e burocrática, tendo em vista as propostas de reformas estruturais nas finanças, na previdência e no sistema institucional-legal, destaca-se nesse contexto a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, mediante ações em que se previnam riscos e corrijam desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas. Entretanto, embora com aspectos sociais, as políticas públicas nesta gestão tiveram a uma modelagem técnico-burocrática de gestão social idealizada.[7] A meta era reduzir o tamanho do Estado, com isso, instituir o estado-mínimo. Neste caso o valor político accontability enfraquece-se, visto que o desenvolvimento da capacidade dos cidadãos de agir na definição das metas coletivas de sua sociedade é baixa, a “pobreza política” decorre da expectativa do povo na condição de tutelado e do Estado como tutor, uma vez que as pessoas optam por esperar que o Estado defenda e proteja seus interesses não organizados[8].
Apesar dos esforços de mudanças no Estado, quanto a seu aparelho burocrático, desde 1930, elas ainda estão por acontecer. A recuperação dos valores fundamentais, tais como a cidadania, a liberdade e a justiça social é a saída para a crise política, pois o isolamento em que os cidadãos e os legisladores mantiveram-se por duas décadas de ditadura congelou os ânimos da sociedade civil, pois como menciona Campos, “a impotência política deriva da falta de organização da população”. Nesse cenário de fragmentação cívica e ética das instituições sociais, a distância entre a democracia no país e o ideal de um governo pelo povo, para o povo e com o povo, aponta para o caminho tortuoso das convulsões sociais. Quanto à gestão pública, embora os governos ainda reverenciem a meritocracia, critérios particularistas, clientelistas, dominam as indicações para cargos de confiança. O serviço público ainda continua altamente vulnerável à politicagem, sobretudo na esfera federal, os empregos públicos funcionam como moeda de troca no jogo político. O maior problema é que o sistema de incentivos generalizados faz as organizações incapazes de estimular desempenhos mais adequados e impotentes para punir desempenhos abaixo do nível desejável. Há, portanto, uma relação de casualidade entre desenvolvimento político e a competente vigilância no serviço público, assim, quanto menos amadurecida a sociedade, menos provável que ela se preocupe com a accontability.[9]
[1] FRIEDE, Reis. Curso de ciência política e teoria geral do Estado. 3ª ed. Forense Universitária. 2006, p. 244
[2] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): p. 36 fev/abr 1990
[3] MARTINS, Paulo Emílio Matos e PIERANTI, Octavio Penna, Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro. P. 117 ed. FGV, 2006
[4] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): p. 41 fev/abr 1990
[5] PINHO, José Antonio Gomes de and SACRAMENTO, Ana Rita Silva. ‘Accountability’: já podemos traduzi-la para o português?. Rev. Adm. Pública [online]. 2009, vol.43, n.6, pp. 1354. ISSN 0034-7612.
[6] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): fev/abr 1990
[7] MARTINS, Paulo Emílio Matos e PIERANTI, Octavio Penna, Estado e Gestão Pública: Visões do Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro. P. 122 ed. FGV, 2006
[8] PINHO, José Antonio Gomes de and SACRAMENTO, Ana Rita Silva. ‘Accountability’: já podemos traduzi-la para o português?. Rev. Adm. Pública [online]. 2009, vol.43, n.6, pp. 1343-1368. ISSN 0034-7612.
[9] CAMPOS, Anna Maria. ‘Accontability’: Quando poderemos Traduzi-la para o português? In: Revista da Administração Pública, Rio de Janeiro, N 24 (2): pp. 39 a 48 fev/abr 1990