A transferência da Corte para o Brasil trouxe profundas transformações ao estatuto colonial brasileiro, através de inúmeras medidas tomadas pelo príncipe regente, a saber:
1 - A carta-régia de 28 de janeiro de 1808, que permitiu a abertura dos portos a todos os navios estrangeiros das potências amigas da Coroa, visto que, a camada dominante reivindicava, havia muito, o livre comércio com as nações estrangeiras. Assim, não obstante o seu caráter provisório, a medida se tornou irreversível, pois os grandes proprietários não aceitariam a volta pura e simples à antiga condição colonial. Além disso, é de duvidar que a burguesia inglesa, passada a tormenta napoleônica na Europa, aceitasse passivamente o fechamento do mercado brasileiro aos seus produtos.
2 – O alvará de 1º de abril de 1808, revogando o de 1785 de D. Maria I, que proibia a instalação de manufaturas no Brasil, integrou-se ao mesmo quadro de abertura dos portos. Entretanto, do ponto de vista da economia brasileira, esta simples decisão jurídica não foi suficiente para promover o surto de manufatureiro. E isso por duas razões: em primeiro lugar, o escravismo; em segundo, o domínio inglês. Apesar de tudo, o setor têxtil e metalúrgico teve um relativo desenvolvimento, embora malogrados, na verdade, contra eles opunham-se barreiras intransponíveis. Por um lado o escravismo impedia o desenvolvimento manufatureiro, pois o mercado interno encontrava-se bloqueado, não só do ponto de vista do consumo (escravo não era consumidor), mas também de ofertas de capitais, que se concentrava no esforço da produção tradicional agrícola. E de outro, mesmo que esses obstáculos fossem vencidos, restava ainda solucionar a questão da concorrência britânica, devido à abertura dos portos: como vencer um concorrente que possuía um sistema fabril altamente dinâmico, produzindo em maiores quantidades, e a preço menor, mercadorias de boa qualidade? Portanto esses dois fatores tornaram o alvará de 1º de abril letra morta.
3 – A lei de 16 de dezembro de 1815, que elevou o Brasil a categoria de reino: Reino Unido a Portugal e Algarves. Chegando ao Brasil, a Corte instalou-se no Rio de Janeiro, em 11 de março de 1808 iniciou-se com a reorganização do Estado, com a nomeação de ministros. Para cá foram transplantados todos os órgãos do Estado Português: os Ministérios do Reino, da Marinha e Ultramar, da Guerra e Estrangeiros e o Real Erário, que em 1821 mudou o nome para Ministério da Fazenda. Além disso, outros órgãos da administração e da justiça foram recriados: Conselho de Estado, Desembargo do Paço, Mesa da Consciência e Ordens, Conselho Supremo Militar. Todavia a complexa rede burocrática implantou-se à revelia da colônia, e a ela se sobrepôs como um corpo estranho, pois o Estado foi recriado para absorver toda nobreza parasitária que acompanhara o regente na fuga. Com relação a justiça, sentiu-se também a presença da Corte: o Tribunal de Relação do Rio de janeiro foi convertido em Casa de Suplicação, tribunal supremo em última instância. O mesmo ocorreu com o setor militar, reforçado com a criação da Academia Militar, da Academia da Marinha, do hospital e do arquivo militares, da fábrica de pólvora, entre outros.
Para Raymundo Faoro a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves (1815) dá uma forma jurídica e política à realidade da mudança da Corte, reconhecendo uma situação de fato, projetando-a no interior, em todas as capitanias, como unidade de poder. A unidade política e territorial foi afinal mantida após a independência, pois, no Brasil, esta consistiu numa mera transferência de poderes. O Estado português que D. João reconstituiu no Brasil parecia não ter relação alguma com a sociedade brasileira, e o seu governo acabou se transformando numa espécie de entidade estranha, que pairava acima da sociedade.
As entidades e repartições públicas se multiplicaram desligadas das necessidades sociais. Os gastos aumentaram e as rendas tributárias tradicionais já não eram suficientes para as despesas. Em outras palavras, a manutenção do Estado e a luxuosa vida cortesã exigiram o aumento dos tributos já existentes e a criação de outros, pois os impostos alfandegários, a principal fonte de recursos do Estado, haviam diminuído. De fato, os direitos de entrada de 48%, ma época da vigência do pacto colonial, caíram para 24%, com a abertura dos portos; a partir de 1810, passaram a 15% para a Inglaterra, de quem, aliás, mais se importava. Para eliminar essas diferenças, o Estado passou a cobrar mais impostos dos brasileiros.
A Corte não podia sobreviver isolada da Europa. Uma abertura para o Exterior era vital, sem contar os interesses da burguesia inglesa. Entretanto, essa medida veio beneficiar, indiretamente, os grandes proprietários rurais, pois ampliou os horizontes mercantis, além de ter possibilitado o seu contato direto com o mundo exterior, sem a onerosa intermediação de Portugal.
Por fim, a burguesia colonialista lusa buscou na sua “estamentização” uma forma de preservar o que restava de seus antigos privilégios coloniais. Reagindo contra isso, os setores identificados com a ideologia liberal, em função dos seus interesses econômicos específicos, conduziam a luta em dois níveis: no plano econômico, contra a persistência do pacto colonial; no plano político, contra a tendência “estamentizadora” da burocracia da Corte, que dominava o aparato do Estado, e da burguesia identificada com os interesses do antigo sistema colonial. Como, por um lado, a elite colonial que tendia para o rompimento do pacto era constituída, na sua maioria, por brasileiros, e a alta burocracia e o comércio externo, por outro lado, eram formados pelos portugueses, a luta política das facções configurou-se como luta entre brasileiros e portugueses.
Fonte: História do Brasil / Boris Fausto - 13 ed. - São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário