terça-feira, 26 de outubro de 2010

DESENVOLVIMENTO E CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
ESTRATÉGIAS DE FLEXIBILIZAÇÃO DA AÇÃO DO ESTADO
Professor: ENRIQUE JERÔNIMO SARAVIA
Autor: FERNANDO NEVES F BANHOS


1. DESENVOLVIMENTO E CRISE DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL
Para além do “Consenso de Washington”

“O paradoxo do liberalismo é considerar o Estado como um mal necessário: portanto, um bem”. A intervenção política na economia é necessária para corrigir externalidades de mercado e aprimorar sua eficiência?

A crise fiscal da década de 1980 produziu seu maior impacto nas economias em desenvolvimento, sobretudo na América Latina: déficit público, dívida interna e externa, falta de crédito, entre outros, apontou a estagnação econômica que prejudicou a poupança interna e os investimentos daqueles países. Estados onde o padrão de desenvolvimento operou-se sobre a base do nacional desenvolvimentismo da política econômica, passou a depender de financiamento externo. Ao se tentar ajustar a inflação através da ortodoxia econômica da época, a inércia do processo inflacionário prejudicou a poupança pública, a capacidade de investimento e, o que é pior, eficácia do capital. No entanto, ao mesmo tempo, o neoliberalismo obteve uma aceitação internacional incontestável. No seu diagnóstico estava causa do baixo desempenho das nações: a ineficiência do setor público, o esgotamento do modelo de Estado-social e a intervenção maciça no mercado.

O Estado mínimo tem por princípio não obstruir o livre fluxo de capital na economia globalizada e o neoliberalismo não se pauta por nenhum corpo teórico consistente é, portanto, um amontoado de práticas e receitas de reformas no aparelho estatal. Não obstante o Welfare State, também corresponde a uma concepção de Estado que conduz a desequilíbrios inflacionários, a déficits públicos, às elevadas cargas tributárias e a crise fiscal, devido à permeabilidade do Estado às demandas sociais e sua completa falta de confiança no mercado. O “Consenso de Washington” - inspiração teórica neoclássica e político-ideológica neoconservadora - foi uma reação à indisciplina fiscal, à excessiva intervenção pública, às restrições ao comércio exterior e aos subsídios à economia. Convencionou-se a seguir as recomendações dos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI. A receita consiste em dez pontos: disciplina fiscal, priorização do gasto público, reforma tributária, altas taxas de juros, liberação do câmbio, abertura ao capital internacional, políticas comerciais liberais, privatizações, desregulação econômica e proteção a propriedade privada.

Medidas no sentido de desmantelar o aparelho do Estado não teriam sido possíveis somente pela influência do Banco Mundial ou qualquer outro organismo internacional, de um lado, houve vitórias políticas decisivas por parte de setores ligados a linha neoconservadora e, de outro, um fortalecimento progressivo da capacidade legislativa do Poder Executivo. A concentração de competências nas mãos do governo, na legitimação de sua eficácia na gestão econômica e na formulação de políticas públicas, está no conjunto de medidas formuladas pelo “Consenso”. Não obstante, políticas de ajuste estrutural e de reformas do Estado, de inspiração neoliberal tal qual o conjunto de medidas formuladas no “Consenso”, aplicadas em países em desenvolvimento, como na América Latina, não obtiveram o êxito esperado. Mostraram-se insuficientes para a retomada do crescimento e se mantiveram abaixo dos patamares anteriores à crise. Como resultado, ampliou o déficit na prestação de direitos fundamentais e uma quantidade cada vez maior da população que continuava abaixo da linha de pobreza. A análise da crise levada a efeito no “Consenso” desprezou a dinâmica perversa do capital financeiro internacional. As crises econômicas mundiais ameaçavam não só a solvência dos países devedores, mas também dos bancos credores.

O México foi o triste exemplo das conseqüências que podem levar as reformas orientadas no interesse do capital internacional em detrimento dos fundamentos macroeconômicos. Após o Plano Brady a confiança na economia mexicana, que cresceu constantemente nos primeiros anos, desapareceu e demonstrou fragilidade devido ao custo social implicado nos ajustes. Outro exemplo, agora de sucesso, diz respeito aos países do sudeste asiático, que apresentaram os melhores resultados e o maior crescimento econômico das últimas décadas. Considerado “milagroso” pelos analistas do Banco Mundial, pelo seu caráter heterodoxo de modelo desenvolvimentista, prontamente lograram elaborar estratégias alternativas, apesar da preocupação com as metas de inflação e com a prudência fiscal, contudo, enfatizaram políticas igualitárias e estimularam o desenvolvimento tecnológico e industrial com o objetivo de se aproximarem dos níveis de sofisticação dos países capitalistas avançados. O engajamento do Estado com uma política de desenvolvimento industrial do setor privado contraria frontalmente a teoria neoliberal e o “Consenso de Washington”.

Hoje não se fala mais em Estado mínimo, mas em um Estado com tamanho e desenho institucional ótimos. A globalização dos mercados e da internacionalização do capital leva os Estados a ajustar suas economias em função da competitividade internacional: Estado e mercado alinhados em torno da otimização das condições de competitividade global do país. O fortalecimento da capacidade governativa do Estado passa pela consecução de cinco tarefas: estabelecer um ambiente político pela estabilidade macroeconômica, investimentos em serviços sociais básicos e de infra-estrutura, proteção mínima aos mais vulneráveis economicamente e proteção ao meio ambiente. Tudo isso consta do Relatório do Banco Mundial sobre Desenvolvimento Mundial em 1997. Contudo, o avanço no sentido de uma superação do “Consenso de Washington” consiste no abandono de dogmas do Estado mínimo e da não intervenção: o problemático não é o volume de atuação do governo e da administração, mas sim a sua capacidade selecionar aquelas demandas dignas de intervenção. Eis o papel catalisador das novas potências econômicas. As novas elaborações para além do “Consenso de Washington” reconhecem a imprescindibilidade das políticas públicas na promoção do desenvolvimento econômico e da competitividade e eficiência dos mercados nacionais, abrangendo o bem-estar e mesmo aspectos mais políticos de cidadania, participação popular, descentralização e responsabilização (accontability) para além da liberação comercial.

2. ALGUMAS ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE GOVERNANÇA
Administração orientada para o público: cliente o cidadão?

A primeira geração de reformadores da nova administração pública buscou reduzir o tamanho do Estado em favor do mercado, as reformas tinham objetivo de reduzir a dimensão da ineficiência estatal. Considerado uma estrutura potencialmente perniciosa que convinha neutralizar, o Estado foi considerado um problema. Assim, os princípios administrativos desse “gerencialismo puro”, absorvidos pela idéia de tornar o setor público o mais parecido com a iniciativa privada, através do aumento dos controles financeiros, de racionalização orçamentária e da delegação de autoridade (empowerment) engendrou a busca da eficiência administrativa numa época de escassez.

As críticas não tardaram a surgir, não pretendiam apontar um novo caminho e nem retroceder ao modelo weberiano, mas complementá-lo com novos significados e desdobramentos: a eficiência na administração pública deve ser pensada em termos de qualidade do serviço ao invés de se restringi-la a uma lógica econômica. A partir dessa crítica desenvolve-se o princípio da administração orientada ao usuário. O verdadeiro norte do conceito de eficiência. Outra crítica incide sobre as formas padronizadas de prestação de serviço público hierarquizadas, funcionando de acordo com uma infinidade de regras, estatutos e regulamentos. Uma cultura de formalismo e impessoalidade sem compromisso com a satisfação efetiva.

Contudo, novas transformações foram inspiradas nas idéias de flexibilização, horizontalização (downsinzing) e na utilização de mecanismos para prestação e avaliação de programas, envolvendo parcerias com o privado. O modelo “consumeirista” de administração pública pode-se resumir em uma administração orientada para o mercado, com gestão por contrato, downsinzing, parcerias público-privadas e uma profunda preocupação com a qualidade e excelência do serviço (feedback).

A segunda geração de princípios reformadores, mais consistentes, também foi objeto de críticas, que conduziram a uma terceira geração de governança. Seus críticos enfatizaram a diferença existente entre um consumidor de bens e serviços privados e o cidadão que é o “consumidor” dos serviços públicos, ou seja, envolve uma dimensão ativa de participação e de responsabilização (accontability) no processo de formulação de política e na implementação e gastão dos serviços públicos.

A perspectiva orientada para o cliente também é criticada porque separa a administração da relação com o público, este não seria mais o proprietário da administração pública, mas seu cliente. Essa noção de “cliente” carrega uma conotação individualista, distante da idéia de “público”. Aplicar essa noção ao serviço público vai de encontro à idéia republicana de que a administração existe para satisfazer o interesse de todos e não só de seus usuários. Outra crítica diz respeito aos mecanismos de mercado para alocação de recursos públicos segundo o desempenho de metas. Tais mecanismos favorecem a polarização dos serviços, pois aqueles prestadores de maior qualidade tende a receber mais recursos, por outro lado aquelas instituições que não atingirem as metas de contrato de gestão receberia menos recursos prejudicando sua qualidade num espiral descendente. A administração orientada para o consumidor tende a privilegiar os interesses de grupos bem organizados em detrimento daqueles desarticulados.

As propostas da terceira via têm-se ênfase no desenvolvimento organizado de baixo pra cima, na valorização da cultura organizacional, na accontability, na participação popular e na proteção da res pública. A administração voltada ao cidadão incorpora a preocupação com a qualidade do serviço, acrescentando, portanto, a dimensão ativa de cidadania. Esse conjunto de idéias referentes à nova governança não é de modo algum uniforme e não há indícios de um processo de convergência nos moldes de reforma administrativa internacionalmente, haja vista que nem todos os estados adotaram os mesmos modelos, alguns já possuem até uma tradição e uma cultura de autonomia e de descentralização bem desenvolvida enquanto outros enfrentam resistências políticas e culturais à desconcentração.

3. DA INTERVENÇÃO A REGULAÇÃO

A estratégia de reforma regulatória é incrementalista, em vez de basear-se na gestão de soluções preconcebidas?

Existem três formas de intervenção política na economia: através da redistribuição de renda, da estabilização macroeconômica e das políticas de regulação para a correção de falhas no mercado. Todos os Estados contemporâneos atuam nessas três frentes conforme a situação econômica e o momento histórico considerado. A partir da década de 1970, a boa governança passou a exigir novas maneiras de intervenção baseadas na regulação. Todavia, o conceito de regulação deve estar integrado a um estado facilitador, catalisador da economia, um Estado voltado para o mercado. Entretanto, para a redefinição da atividade governamental, de um governo produtor para um governo catalisador e preciso se separar o núcleo estratégico do Estado formulador de políticas que deliberem sobre os rumos do desenvolvimento do corpo da administração pública. O objetivo é reduzir as atividades do governo e da administração à formulação de normas reguladoras da economia e deixar a prestação direta propriamente dita a cargo do setor privado ou das parcerias do Estado com a sociedade civil. O Estado, portanto, que se compromete a prestar diretamente bens e serviços para o mercado tende a perder a capacidade de decidir, formular políticas e estratégias de longo prazo e indicar os rumos da sociedade.

Com a internacionalização da economia a formulação de estratégias de desenvolvimento constitui-se uma tarefa extremamente complexa, tão conjuntural que exige cuidados especiais e correções de trajetórias onde os governos perdem a capacidade de coordenação econômica e de planejamento. Os governos devem se concentrar na construção de um projeto de desenvolvimento, deixando para o mercado a organização da produção e a alocação de recursos. Portanto, a mudança nas funções do Estado acarreta transformações profundas em sua estrutura: novos instrumentos de gestão, novos âmbitos de conflito político, novos atores, novas formas de responsabilização e nova cultura político-administrativa. Todas essas medidas ficaram conhecidas como políticas de desregulamentação. Não se trata apenas de uma supressão pura e simples da atuação do Estado. A desregulamentação segue-se uma nova regulação, menos rígida que a primeira, porém, mais eficaz. Por exemplo: leis antitrustes, política tributária, redução de tarifas, regulação na área social e políticas punitivas. Trata-se, não de supressão de mecanismos de intervenção política e econômica, mas de substituição de velhos mecanismos por outros supostamente méis eficazes.

Todavia, os antigos instrumentos e instituições típicos de Estado intervencionista não poderão ser substituídos imediatamente, pelo contrário, o processo de desregulamentação emerge e um marco regulatório que será complementado progressivamente. A estratégia de reforma regulatória é incrementalista, em vez de basear-se na gestão de soluções preconcebidas. A impossibilidade de antecipar comportamentos, prever problemas e gerar um consenso em torno da reforma administrativa, desse modo, convém que o marco regulatório seja o mais claro possível, conservando a flexibilidade que lhe permita incrementar-se e adaptar-se diante dos novos contextos. No que tange aos limites e aos excessos que podem conduzir como o controlar o seu uso, num estado desenvolvimentista, as políticas públicas encontram-se contidas nas limitações orçamentárias ou nas limitações de crédito. No entanto, quando se trata de uma atividade regulatória que envolve formulações de regras, não há limites orçamentários significativos.

O controle do volume de regulação não é feito de nenhum ponto específico do sistema político. Os parlamentares controlam o volume de recursos destinados para cada programa através da lei orçamentária, ao passo que o Ministério respectivo para cada área e controla a liberação dos fundos no limite do rubricado. Auditorias podem ser realizadas para avaliar o desempenho e o custo real dos programas. Contudo não há possibilidade de auditoria nem de fixação de prioridades (nem pelo legislativo, nem por ministérios) apenas por agências reguladoras autônomas. Com o advento do estado regulador, observa-se um deslocamento do cenário de lutas políticas, haja vista que a principal fonte de conflito político deixa de ser o processo de elaboração das leis orçamentárias para concentrar-se sobre o controle da produção normativa reguladora. A autonomia e a flexibilidade organizacional das agencias reguladoras devem ser compensadas pala possibilidade do Poder Judiciário controlar o mérito administrativo, na medida em que a administração direta vai diminuindo sua atuação terceirizando boa parte dos serviços mediante parceria com o setor privado ou com a própria administração indireta. Assim novos atores emergem, além da atuação dos tribunais imparciais demais para sujeitos ativos na elaboração da regulação, a participação popular revela-se mais efetiva do que os canais políticos tradicionais.

Falar de uma sociedade civil como um fórum no qual convive uma infinidade de discussões onde é impossível que todos os cidadãos participem, exige que os atores sociais também se especializem, limitando-se a acompanhar as demais quando possível. A especialização dos parlamentos em comissões de trabalho reflete exatamente essa fragmentação. Portanto, a partir da emergência desses novos sujeitos coletivos de representação política, novos padrões de legitimidade vão sendo forjados. Cumpre salientar que as políticas de regulação devem ser sempre justificadas publicamente, sujeitando-se à revisão judicial do mérito.

4. DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA, SUBSIDIARIEDADE E PARTICIPAÇÃO

Em virtude da polissemia de conceitos, a descentralização, alcança um consenso significativo entre várias tendências de pensamentos. Gravitam em torno do seu conceito outros que se articulam, como a autonomia e flexibilização de procedimentos, downsizing, democracia e transparência, participação popular, federalismo, subsidiariedade e até mesmo privatização e terceirização de serviços públicos.

A crise fiscal e a da dívida nos países em desenvolvimento são muitas vezes apontadas como uma crise de capitalização excessiva da administração pública, todavia, o centralismo foi uma estratégia eficiente, permitia que a informação fosse processada lentamente em toda a cadeia hierárquica, o suficiente para não haver defasagens significativas de informação durante o processo. Contudo, a revolução tecnológica, sobretudo na comunicação, acabou com os obstáculos (espaciais e temporais) e criou condições para a aceleração da economia e da política. As demandas por centralização surgiram como imperativo de eficiência na administração pública, outros foram acrescentados relacionados mais com a governabilidade do que com a governança.

O marco conceitual e metodológico aponta para a distinção entre descentralização e descentralização administrativa. Convém que a descentralização seja compreendida no marco teórico da governança, portanto, qualquer definição do que venha a ser descentralização deve focar a crise fiscal e a função regulatória do Estado, descentralização está relacionada com a separação entre o núcleo governamental e a periferia implementadora. Para efeito de estudo pode-se distinguir três modalidades de descentralização: administrativa (que compreende a desconcentração territorial e funcional, exercendo atividade regulatória mediante agências reguladoras), a política (se reflete na formulação do pacto federativo) e a econômica (que envolve mecanismos de mercados ou de quase-mercado para execução de serviços públicos, ao monopólio e a prestação direta).

Muitas são as vantagens às reformas descentralizadoras, as instituições ficam mais flexíveis, mais próximas das pessoas, tornam-se mais inovadoras e criativas, comprometidas e produtivas. A descentralização administrativa com vistas à eficiência é mais amplamente defendida na medida em que os órgãos públicos tornam-se cada vez mais complexos e seus agentes cada vez mais qualificados. Trata-se, portanto, de substituir a burocracia tradicional por um modelo gerencial pós-burocrático, no qual o poder da responsabilidade de decisão é transferido para o nível mais baixo da administração. A descentralização da administração voltada para serviços públicos em agências também faz parte dessa tendência por maior flexibilidade e autonomia.

A crise dos parlamentos como instâncias de representação de interesses coletivos do “bem-estar geral” abriu perspectivas teóricas para a democracia direita em que o cidadão não é apenas o destinatário da administração pública e sim o protagonista da construção da governança. Trata-se de permitir à sociedade se autogerir, deliberando sobre políticas sociais, as formas de prestação de serviço e de investimento público. Tudo isso guarda funcionalidade com as novas funções atribuídas ao Estado, de prestador e regulador.

Contudo, não basta adaptar-se a situações sempre novas, sem que isso venha acompanhado da descentralização de recursos públicos. Ao governo federal competiria, além de zelar pela política externa, a gestão da massa monetária, ao passo que ao município seriam transferidas as atividades administrativas rotineiras, referentes aos serviços públicos básicos e cotidianos. Nesse contexto a importância do princípio da susbidiariedade relaciona-se a idéia de complementaridade e de secundariedade. Tal princípio caracteriza uma relação na qual um ente complementa e reforça a atuação do outro, mas que mantém uma relação a este uma posição secundária, agindo quando necessário ante suas falhas. Tem-se, portanto, relações entre o governo federal e os entes federados entre esses e os municípios, entre esfera pública e esfera privada, entre Estado e sociedade civil, entre Estado e mercado, entre Estados e blocos econômicos. Idéias como auto-organização da sociedade autonomia individual, liberdade, limitação da atuação estatal e regulação encontram-se articuladas no princípio da subsidiariedade, princípio conformador da sociedade, que reconstrói as relações entre ela e o sistema político visando a autonomia da pessoa humana em face das estruturas sociais.

No que se refere à descentralização política, postula subsidiariedade do governo central em relação aos governos locais, com base nele justificam reformas na repartição das competências no Estado Federal e nos municípios (meios para resolver problemas locais, restando a União a atuação residual). Na medida em que as políticas desenvolvimentistas no nível local adaptam-se às características econômicas e sociais a fim de resolver problemas, elas tendem acarretar diferenciações quantitativas e qualitativas nos serviços prestados a populações de diferentes regiões. O princípio da subsidiariedade aplica-se nessa situação para diferenciar dois sistemas de distribuição: um centralizador e outro regional. Portanto, a descentralização não constitui um remédio para todos os males, nem se aplica a todas as situações, ao contrário, a descentralização radical e unilateral de políticas públicas acentua a desigualdade regional.

Além da descentralização administrativa e da descentralização política tem-se ainda a descentralização econômica, que não se trata de privatização pura e simples e sim de uma modalidade de descentralização à qual aplicam-se as mesmas considerações sobre participação popular e subsidiariedade. As dificuldades para implementação são inúmeras: a descentralização bem-sucedida requer comprometimento político, além de exigir investimentos significativos na capacitação técnica de seus agentes. Os princípios da descentralização e subsidiariedade não são plenamente realizados senão quando vierem acompanhadas de correspondente autonomia financeira e independência em relação aos repasses do governo federal. O debate sobre descentralização precisa aprofundar-se sobre a caracterização do conceito de “local”, que envolve tanto dimensões físico-espaciais como histórico-sociais que não se sobrepõem necessariamente.

5. MECANISMOS DE MECADO NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO: ACORDOS DE METAS E AVALIAÇÃO POR DESEMPENHO

Há uma tendência genérica nos países da OCDE, tanto quanto na América Latina de considerar o acesso aos serviços públicos como um direito fundamental. A obrigação do Estado não seria efetivar direitos fundamentais, mas garantir que eles sejam prestados e que estejam ao alcance da população. Que eles sejam assegurados é uma coisa; como serão prestados ou por quem é outra questão.

Assim, uma das mais importantes inovações em matéria de políticas públicas consiste na substituição dos mecanismos tradicionais de alocação de recursos pela competição do setor público com o setor privado, ou mesmo dentro do próprio setor público. A introdução de mecanismos de mercado ocorre apenas do lado da oferta de serviço, sujeita à competição entre fornecedores; do lado do comprador, porém, a demanda é estabelecida politicamente dentro do processo orçamentário. A compatibilização de novos instrumentos exige que a qualidade e a eficiência se legitimem sobre a equidade, que deverá ser assegurado pelo Estado no âmbito de sua atividade regulatória. A regulação, por sua vez, deve assegurar que haja competição, e esse paramercado deve estar estruturado de modo a satisfazer o interesse público e desenvolver mecanismos de avaliação de políticas e de responsabilização.

O suporte teórico dessa concepção é o neoconstitucionalismo econômico, a perspectiva do agente/principal (voltada para o cidadão-cliente) e para o corte de gastos desnecessários. Trata-se de encontrar o desenho institucional ótimo a fim de que os atores sociais, públicos e privados, sejam estimulados a comportar-se de maneira mais eficiente e economicamente possível. Nesse contexto, portanto, o mecanismo de mercado é superior ao modelo de prestação direta sob monopólio estatal.

Contudo, essa abordagem é criticada por sua descrição simplista do comportamento social. É do interior desse arcabouço teórico que emergirá o tipo específico de relação entre o núcleo estratégico do Estado e o setor público ou privado: trata-se do contrato de gestão, também denominado de acordo-programa. É em torno dessa relação jurídico-administrativa que orbitam os temas cruciais da reforma gerencial do Estado, tais como administração por objetivos ou metas, ou desempenho com os órgãos inferiores. A decisão administrativa não provém de uma fonte apenas, mas a partir de informações prestadas e de poderes e influências exercidos de vários pontos do sistema. Portanto, a idéia de estabelecer objetivos e cobrar resultados na forma de comando/controle não é apenas contraproducente como inoperacional, porque na prática não é assim que acontece.

O acordo de programa pode ser celebrado na forma de parceria para prestação de serviços entre o setor estatal e privado, assim como entre órgãos da administração direta e indireta, a fim de conceder maior autonomia gerencial e flexibilizar procedimentos administrativos. O instrumento institucionaliza uma relação do tipo agente/principal, envolvendo o governo e o setor privado, esses acordos apresentam alguns elementos em comum, constitutivos de sua própria natureza: primeiramente o acordo deve estabelecer as missões e os objetivos perseguidos pelo órgão regulador, em segundo lugar vem o conteúdo propriamente dito, na qual se especificam as obrigações das “partes” envolvidas, as metas específicas, as finais, de resultados, os indicadores de desempenho, as ações necessárias para alcançá-los, os resultados disponíveis, dentre outras cláusulas, uma importante, uma cláusula específica que consiste na autorização do governo ou do órgão regulador para que o agente do órgão contratado flexibilize certos controles de procedimentos ou determinadas normas administrativas, dentro do espírito de gestão por metas, ou de gestão por resultados.

A avaliação, etapa fundamental do processo, que consiste em aprimorar a capacidade de decisão, seja pela própria organização, seja pelos órgãos gestores, fiscalizadores ou financiadores da organização avaliada, constitui um elo que, na cadeia de gerenciamento, fecha o ciclo, retroalimentando o circuito (feedback). Visa à eficiência do aparelho do Estado em produzir resultados como economia de recursos. A auditoria, contudo, envolve coleta de informações acerca de procedimentos, cabe o auditor, portanto, a responsabilidade de analisar a informação apresentada e relatar desvios formais. Já a avaliação é uma pesquisa empírica sobre o impacto do desvio de um determinado programa e suas variáveis causais.

Registra-se uma tendência no sentido de fazer convergir os dois objetivos – accountability e eficiência – superando a dicotomia auditoria/avaliação, através de procedimentos de auditoria de desempenho, instrumento que vem sendo utilizado em países da OCDE. Trata-se de um instrumento de responsabilização, de substituir o accountability de regularidade por um accountability de desempenho. As auditorias de eficiência que visam avaliar a relação custo/benefício nas organizações são de longe as mais usadas. No entanto, existem também as auditorias de capacidade de desempenho, que avaliam a estrutura organizacional e seus procedimentos. É bom “avaliar as avaliações”. Entre as variáveis que podem influenciar a eficácia dos programas de avaliação e o desenvolvimento de uma metodologia técnica adequada. A avaliação deve ser uma prática sistemática e institucionalizada, isto significa que o avaliador seja externo e avaliação esteja subordinada ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo.

No que se refere ao sistema de acompanhamento e avaliação, é necessário analisar o processo orçamentário. A nova governança, baseada na idéia de que a alocação de recursos dar-se-á através de mecanismos de mercado, implica, portanto, numa revisão na forma como tradicionalmente se elabora um orçamento público e sua função. O orçamento, por sua vez, se vê obrigado a dar continuidade àqueles serviços que já estão em curso, que consome 90% ou mais dos recursos, na prática, o processo orçamentário apenas ratifica o ajuste do “menos pior” possível. Neste cenário realmente não há oportunidade para considerações de eficiência e desempenho.

As críticas às deficiências dos acordos de programa incidem justamente na questão dos controles. Há uma tensão já na definição dos objetivos, na medida em que os órgãos reguladores tendem a enfatizar o aspecto financeiro, a economia, mais do que os resultados propriamente ditos. Por sua vez, os agentes implementadores tendem a subavaliar as potencialidades, a fim de tornar as metas mais fáceis de serem cumpridas. Também observa-se a falta de capacitação técnica da administração para negociar e elaborar os acordos, como também de proceder à avaliação. Dessa forma, torna-se elevado o custo social do aprendizado organizacional prévio ao regular o funcionamento desses acordos.

De um modo geral, a tensão entre gestão financeira e gestão por desempenho esbarra em dificuldades e resistências nas rotinas administrativas já há muito obedecidas. As exigências do processo político democrático conspiram contra toda solução tecnocrática. Finalmente, o caráter eminentemente qualitativo dos serviços públicos dificulta a avaliação de resultados e sua atribuição a causas específicas.

6. A NOVA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O DIREITO ADMINISTRATIVO

É possível que se permita preterir a legalidade em nome da eficiência, ou mesmo preterir a moralidade administrativa?

O direito administrativo passou ao largo d todas as transformações relevantes no Estado no século XX. Desenvolveu-se com o apoio do Estado Liberal de Direito mediante a positivação em sede constitucional de um conjunto extenso de liberdades públicas. No Estado Liberal de Direito tais liberdades guardam um caráter formal por excelência. A noção de Estado de Direito naquela época era entendido Omo aquele submetido à lei e que atua através de normas gerais e normas abstratas. Foi nesse contexto que Estado Liberal de Direito, inspirado no positivismo jurídico e nas idéias de liberdade e legalidade formais que se desenvolveu o os princípios burocráticos do estivo weberiano e do Direito Administrativo.

A evolução do Estado Liberal em Direção ao Estado do Bem-estar Social colocou em crise o paradigma formal positivista, do mesmo modo que a lei como a principal fonte do direito. Os Estados já não mais se limitavam a preservar liberdades negativas e formais, viram-se obrigados a intervir no sentido de corrigir desigualdades de fato em nome da dimensão material dos direitos fundamentais. Assim assisti-se nesse contexto à interpenetração entre esfera pública e privada em virtude da recorrente regulação estatal. Não obstante, tais transformações que mudaram para sempre o perfil das sociedades capitalistas, a burocracia estatal e o direito administrativo permaneceram rígidos pelos mesmos princípios.

No entanto, uma das funções assumidas pelo Estado-administração no capitalismo organizado foi a legitimação. Porém, com o incremento das funções de intervenção do Estado na ordem econômica e social, através de políticas publicas de redistribuição, os problemas de legitimação pública tornaram-se mais complicados. Passa-se a exigir a eficácia e o planejamento, além da legalidade, o que por sua vez, fortaleceu o componente tecnocrático do Estado. De um lado, o princípio da legalidade prescreve que a atividade administrativa encontra-se atrelada a observância das normas geras e abstratas. Do outro, os imperativos técnicos de solução de problemas exigem medidas específicas e não regras gerais que se adaptem à natureza dos problemas. Em outras palavras, do ponto de vista da eficácia administrativa, os fins a serem alcançados é que vão determinar os meios a serem utilizados; já do ponto de vista da legalidade, o procedimento deve ser observado, independentemente de sua funcionalidade.

Portanto, com o incremento das funções do Estado, a administração se vê às voltas com o risco de crise de racionalidade (fruto da insatisfação popular e de políticas públicas que não lograram sucesso) disso decorrem mudanças estruturais significativas na atividade administrativa que se traduzem no aumento do decisionismo tecnocrático e na transição de um direto formal para um direito material. A possibilidade efetiva da administração elaborar normas gerais e abstratas, de autorizar a flexibilização de procedimentos em troca de índices de produtividade, gera perplexidade tendo em vista a idéia que a administração deve se guiar pela estrita legalidade de seus atos. Portanto, a crise da lei, acarretada pelo aumento da capacidade legislativa do Poder Executivo, que fez dela um instrumento de governo, conduziu a sua substituição na Constituição como principal fonte do direito positivo e os direitos fundamentais como o melhor parâmetro de controle dos atos do poder público.

Atualmente com as idéias de gerenciamento desenvolvendo-se pelas administrações públicas ao redor do mundo, vem-se somar imperativos tradicionais às novas exigências, em especial a eficiência e efetividade na prestação de serviços públicos, logo a administração pública vem de encontro à satisfação do usuário/cidadão. Em lugar de uma administração tipicamente burocrática, propõe-se uma “ad hocracia”, na qual as competências e seus respectivos poderes são estipulados, remanejados e extintos segundo suas tarefas a serem desempenhadas e conforme a natureza do problema a se resolver. Contudo, do lado do direito administrativo, pouco ou nada foi feito no sentido de elaborar instrumentos jurídicos úteis aos administradores para controlar os perigos que há em toda essa flexibilização. O direito administrativo ainda considera a administração pública como um bloco monolítico, hierarquizado, unitário, coerente, e sem relações horizontais internas de poder e de mútua influência.

Compreender a administração pública como ela realmente funciona não significa legitimar patologias, tara-se, contudo, de simplesmente saber como ela realmente pode ser; e desenvolver instrumentos jurídicos, que respaldado em princípios políticos, como o princípio da subsidiariedade, da participação popular e da instrumentalidade da administração pública, confiram o caráter da administração ad hocratica, que ainda encontra-se insipiente.

O princípio da eficiência, incluído entre os princípios gerais da administração pública (ao lado dos princípios da Legalidade, moralidade e impessoalidade) através da uma Emenda Constitucional nº 19, de 1988, destoa dos demais, traduzindo uma necessidade diversa, mais ofensiva que defensiva. Ante um ato concreto da administração é possível, portanto, ocorrer um conflito entre princípios, é de se presumir a possibilidade de o princípio da eficiência colida com a legalidade ou com a moralidade. Por conseguinte, é possível que se permita preterir a legalidade em nome da eficiência, ou mesmo preterir a moralidade administrativa. É preciso que o princípio da eficiência seja interpretado não como um princípio que visa legitimar atos ilegais ou imorais em nome da eficiência, pelo contrário, para deslegitimar atos ineficientes, ainda que legais e morais. A oposição entre controle da discricionariedade e flexibilização de procedimentos é outra forma de se expressar a tensão entre a racionalidade formal e racionalidade substancial.

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