quarta-feira, 27 de abril de 2011

Via-Láctea - Olavo Bilac


I
Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada,
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.
E eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas feria...
Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! Sonhos meus! Íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.
E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando...
II
Tudo ouvirás, pois que, bondosa e pura,
Me ouves agora com melhor ouvido:
Toda a ansiedade, todo o mal sofrido
Em silêncio, na antiga desventura...
Hoje, quero, em teus braços acolhido,
Rever a estrada pavorosa e escura
Onde, ladeando o abismo da loucura,
Andei de pesadelos perseguido.
Olha-a: torce-se toda na infinita
Volta dos sete círculos do inferno...
E nota aquele vulto: as mãos eleva,
Tropeça, cai, soluça, arqueja, grita,
Buscando um coração que foge, e eterno
Ouvindo-o perto palpitar na treva.
III
Tantos esparsos vi profusamente
O caminho que, a chorar, trilhava!
Tantos havia, tantos! E eu passava
Por todos eles frio e indiferente...
Enfim! enfim! Pude com a mão tremente
Achar na treva aquele que buscava...
Por que fugias, quando eu te chamava,
Cego e triste, tateando, ansiosamente?
Vim de longe, seguindo de erro em erro,
Teu fugitivo coração buscando
E vendo apenas corações de ferro.
Pude, porém, tocá-lo soluçando...
E hoje, feliz, dentro do meu o encerro,
E ouço-o, feliz, dentro do meu pulsando.
IV
Como a floresta secular, sombria,
Virgem do passo humano e do machado,
Onde apenas, horrendo, ecoa o brado
Do tigre, e cuja agreste ramaria
Não atravessa nunca a luz do dia,
Assim também, da luz do amor privado,
Tinhas o coração ermo e fechado,
Como a floresta secular, sombria...
Hoje, entre os ramos, a canção sonora
Soltam festivamente os passarinhos.
Tinge o cimo das árvores a aurora...
Palpitam flores, estremecem ninhos...
E o sol do amor, que não entrava outrora,
Entra dourando a areia dos caminhos.
V
Dizem todos: "Outrora como as aves
Inquieta, como as aves tagarela,
E hoje... que tens? Que sisudez revela
Teu ar! que idéias e que modos graves!
Que tens, para que em pranto os olhos laves?
Sê mais risonha, que serás mais bela!"
Dizem. Mas no silêncio e na cautela
Ficas firme e trancada a sete chaves...
E um diz: "Tolices, nada mais!" Murmura
Outro: "Caprichos de mulher faceira!"
E todos eles afinal: "Loucura!"
Cegos que vos cansais a interrogá-la!
Vê-la bastava; que a paixão primeira
Não pela voz, mas pelos olhos fala.
VI
Em mim também, que descuidado vistes,
Encantado e aumentando o próprio encanto,
Tereis notado que outras cousas canto
Muito diversas das que outrora ouvistes.
Mas amastes, sem dúvida... Portanto,
Meditais nas tristezas que sentistes:
Que eu, por mim, não conheço cousas tristes,
Que mais aflijam, que torturem tanto.
Quem ama inventa as penas em que vive:
E, em lugar de acalmar as penas, antes
Busca novo pesar com que as avive.
Pois sabei que é por isso que assim ando:
Que é dos loucos somente e dos amantes
Na maior alegria andar chorando.
VII
Não têm faltado bocas de serpentes,
(Dessas que amam falar de todo o mundo,
E a todo o mundo ferem, maldizentes)
Que digam: "Mata o teu amor profundo!
Abafa-o, que teus passos imprudentes
Te vão levando a um pélago sem fundo...
Vais te perder!" E, arreganhando os dentes,
Movem para o teu lado o olhar imundo:
"Se ela é tão pobre, se não tem beleza,
Irás deixar a glória desprezada
E os prazeres perdidos por tão pouco?
Pensa mais no futuro e na riqueza!"
E eu penso que afinal... Não penso nada:
Penso apenas que te amo como um louco!
VIII
Em que céus mais azuis, mais puros ares,
Voa pomba mais pura? Em que sombria
Moita mais nívea flor acaricia,
A noite, a luz dos límpidos luares?
Vives assim, como a corrente fria,
Que, intemerata, aos trêmulos olhares
Das estrelas e à sombra dos palmares,
Corta o seio das matas, erradia.
E envolvida de tua virgindade,
De teu pudor na cândida armadura,
Foges o amor, guardando a castidade,
- Como as montanhas, nos espaços francos
Erguendo os altos píncaros, a alvura
Guardam da neve que lhes cobre os flancos.
IX
De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
Usam todas de lágrimas e preces:
Tu de acerbas risadas e ironias.
De modo tal minha atenção desvias,
Com tal perícia meu engano teces,
Que, se gelado o coração tivesses,
Certo, querida, mais ardor terias.
Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...
Falo-te - e com que fogo a voz levanto! -
Em vão... Finges-te surda às minhas frases..
Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
Cega: e nem vês a nova dor que trazes
À dor antiga que doía tanto!
X
Deixa que o olhar do mundo enfim devasse
Teu grande amor que e teu maior segredo!
Que terias perdido, se, mais cedo,
Todo o afeto que sentes se mostrasse?
Basta de enganos! Mostra-me sem medo
Aos homens, afrontando-os face a face:
Quero que os homens todos, quando eu passe,
Invejosos, apontem-me com o dedo.
Olha: não posso mais! Ando tão cheio
Deste amor, que minh'alma se consome
De te exaltar aos olhos do universo.
Ouço em tudo teu nome, em tudo o leio:
E, fatigado de calar teu nome,
Quase o revelo no final de um verso.
XI
Todos esses louvores, bem o viste,
Não conseguiram demudar-me o aspecto:
Só me turbou esse louvor discreto
Que no volver dos olhos traduziste...
Inda bem que entendeste o meu afeto
E, através destas rimas, pressentiste
Meu coração que palpitava, triste,
E o mal que havia dentro em mim secreto.
Ai de mim, se de lágrimas inúteis
Estes versos banhasse, ambicionando
Das néscias turbas os aplausos fúteis!
Dou-me por pago, se um olhar lhes deres:
Fi-los pensando em ti, fi-los pensando
Na mais pura de todas as mulheres.
XII
Sonhei que me esperavas. E, sonhando,
Saí, ansioso por te ver: corria...
E tudo, ao ver-me tão depressa andando,
Soube logo o lugar para onde eu ia.
E tudo me falou, tudo! Escutando
Meus passos, através da ramaria,
Dos despertados pássaros o bando:
"Vai mais depressa! Parabéns!" dizia.
Disse o luar: "Espera! que eu te sigo:
Quero também beijar as faces dela!"
E disse o aroma: "Vai, que eu vou contigo!"
E cheguei. E, ao chegar, disse uma estrela:
"Como és feliz! como és feliz, amigo,
Que de tão perto vais ouvi-la e vê-la!"
XII
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".
XIV
Viver não pude sem que o fel provasse
Desse outro amor que nos perverte e engana:
Porque homem sou, e homem não há que passe
Virgem de todo pela vida humana.
Por que tanta serpente atra e profana
Dentro d'alma deixei que se aninhasse?
Por que, abrasado de uma sede insana,
A impuros lábios entreguei a face?
Depois dos lábios sôfregos e ardentes,
Senti - duro castigo aos meus desejos -
O gume fino de perversos dentes...
E não posso das faces poluídas
Apagar os vestígios desses beijos
E os sangrentos sinais dessas feridas!
XV
Inda hoje, o livro do passado abrindo,
Lembro-as e punge-me a lembrança delas;
Lembro-as, e vejo-as, como as vi partindo,
Estas cantando, soluçando aquelas.
Umas, de meigo olhar piedoso e lindo,
Sob as rosas de neve das capelas;
Outras, de lábios de coral, sorrindo,
Desnudo o seio, lúbricas e belas...
Todas, formosas como tu, chegaram,
artiram... e, ao partir, dentro em meu seio
Todo o veneno da paixão deixaram.
Mas, ah! nenhuma teve o teu encanto,
Nem teve olhar como esse olhar, tão cheio
De luz tão viva, que abrasasse tanto!
XVI
Lá fora, a voz do vento ulule rouca!
Tu, a cabeça no meu ombro inclina,
E essa boca vermelha e pequenina
Aproxima, a sorrir, de minha boca!
Que eu a fronte repouse ansiosa e louca
Em teu seio, mais alvo que a neblina
Que, nas manhãs hiemais, úmida e fina,
Da serra as grimpas verdejantes touca!
Solta as tranças agora, como um manto!
Canta! Embala-me o sono com teu canto!
E eu, aos raios tranqüilos desse olhar,
Possa dormir sereno, como o rio
Que, em noites calmas, sossegado e frio,
Dorme aos raios de prata do luar!...
XVII
Por estas noites frias e brumosas
É que melhor se pode amar, querida!
Nem uma estrela pálida, perdida
Entre a névoa, abre as pálpebras medrosas...
Mas um perfume cálido de rosas
Corre a face da terra adormecida...
E a névoa cresce, e, em grupos repartida,
Enche os ares de sombras vaporosas:
Sombras errantes, corpos nus, ardentes
Carnes lascivas... um rumor vibrante
De atritos longos e de beijos quentes...
E os céus se estendem, palpitando, cheios
Da tépida brancura fulgurante
De um turbilhão de braços e de seios.
XVIII
Dormes... Mas que sussurro a umedecida
Terra desperta? Que rumor enleva
As estrelas, que no alto a Noite leva
Presas, luzindo, à túnica estendida?
São meus versos! Palpita a minha vida
Neles, falenas que a saudade eleva
De meu seio, e que vão, rompendo a treva,
Encher teus sonhos, pomba adormecida!
Dormes, com os seios nus, no travesseiro
Solto o cabelo negro... e ei-los correndo,
Doudejantes, subtis, teu corpo inteiro...
Beijam-te a boca tépida e macia,
Sobem, descem, teu hálito sorvendo...
Por que surge tão cedo a luz do dia?!...
XIX
Sai a passeio, mal o dia nasce,
Bela, nas simples roupas vaporosas;
E mostra às rosas do jardim as rosas
Frescas e puras que possui na face.
Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
Atavia-se. Há falas misteriosas
Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
É como se uma sílfide passasse!
E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro...
Curvam-se as flores trêmulas... O bando
Das aves todas vem saudá-la em coro...
E ela vai, dando ao sol o rosto brando,
Às aves dando o olhar, ao vento o louro
Cabelo, e às flores os sorrisos dando..
XX
Olha-me! O teu olhar sereno e brando
Entra-me o peito, como um largo rio
De ondas de ouro e de luz, límpido, entrando
O ermo de um bosque tenebroso e frio.
Fala-me! Em grupos doudejantes, quando
Falas, por noites cálidas de estio,
As estrelas acendem-se, radiando,
Altas, semeadas pelo céu sombrio.
Olha-me assim! Fala-me assim! De pranto
Agora, agora de ternura cheia,
Abre em chispas de fogo essa pupila...
E enquanto eu ardo em sua luz, enquanto
Em seu fulgor me abraso, uma sereia
Soluce e cante nessa voz tranqüila!
XXI
A minha mãe.
Sei que um dia não há (e isso é bastante
A esta saudade, mãe!) em que a teu lado
Sentir não julgues minha sombra errante,
Passo a passo a seguir teu vulto amado.
- Minha mãe! minha mãe! - a cada instante
Ouves. Volves, em lágrimas banhado,
O rosto, conhecendo soluçante
Minha voz e meu passo costumado.
E sentes alta noite no teu leito
Minh'alma na tua alma repousando,
Repousando meu peito no teu peito...
E encho os teus sonhos, em teus sonhos brilho,
E abres os braços trêmulos, chorando,
Para nos braços apertar teu filho!
XXII
A Goethe.
Quando te leio, as cenas animadas
Por teu gênio, as paisagens que imaginas,
Cheias de vida, avultam repentinas,
Claramente aos meus olhos desdobradas...
Vejo o céu, vejo as serras coroadas
De gelo, e o sol, que o manto das neblinas
Rompe, aquecendo as frígidas campinas
E iluminando os vales e as estradas.
Ouço o rumor soturno da charrua,
E os rouxinóis que, no carvalho erguido,
A voz modulam de ternuras cheia:
E vejo, à luz tristíssima da lua,
Hermann, que cisma, pálido, embebido
No meigo olhar da loura Dorotéia.
XXIII
De Calderón.
Laura! dizes que Fábio anda ofendido
E, apesar de ofendido, namorado,
Buscando a extinta chama do passado
Nas cinzas frias avivar do olvido.
Vá que o faça, e que o faça por perdido
De amor... Creio que o faz por despeitado:
Porque o amor, uma vez abandonado,
Não torna a ser o que já tinha sido.
Não lhe creias nos olhos nem na boca,
Inda mesmo que os vejas, como pensas,
Mentir carícias, desmentir tristezas...
Porque finezas sobre arrufos, louca,
Finezas podem ser; mas, sobre ofensas,
Mais parecem vinganças que finezas.
XXIV
A Luís Guimarães.
Vejo-a, contemplo-a comovido... Aquela
Que amaste, e, de teus braços arrancada,
Desceu da morte a tenebrosa escada,
Calma e pura aos meus olhos se revela.
Vejo-lhe o riso plácido, a singela
Feição, aquela graça delicada,
Que uma divina mão deixou vazada
No eterno bronze, eternamente bela.
Só lhe não vejo o olhar sereno e triste:
- Céu, poeta, onde as asas, suspirando,
Chorando e rindo loucamente abriste...
- Céu povoado de estrelas, onde as bordas
Dos arcanjos cruzavam-se, pulsando
Das liras de ouro as gemedoras cordas...
XXV
A Bocage.
Tu, que no pego impuro das orgias
Mergulhavas ansioso e descontente,
E, quando à tona vinhas de repente,
Cheias as mãos de pérolas trazias;
Tu, que do amor e pelo amor vivias,
E que, como de límpida nascente,
Dos lábios e dos olhos a torrente
Dos versos e das lágrimas vertias;
Mestre querido! viverás, enquanto
Houver quem pulse o mágico instrumento,
E preze a língua que prezavas tanto:
E enquanto houver num canto do universo
Quem ame e sofra, e amor e sofrimento
Saiba, chorando, traduzir no verso.
XXVI
Quando cantas, minh'alma desprezando
O invólucro do corpo, ascende às belas
Altas esferas de ouro, e, acima delas,
Ouve arcanjos as citaras pulsando.
Corre os países longes, que revelas
Ao som divino do teu canto: e, quando
Baixas a voz, ela também, chorando,
Desce, entre os claros grupos das estrelas.
E expira a tua voz. Do paraíso,
A que subira ouvindo-te, caído,
Fico a fitar-te pálido, indeciso...
E enquanto cismas, sorridente e casta,
A teus pés, como um pássaro ferido,
Toda a minh'alma trêmula se arrasta...
XXVII
Ontem - néscio que fui! - maliciosa
Disse uma estrela, a rir, na imensa altura:
"Amigo! uma de nós, a mais formosa
De todas nós, a mais formosa e pura,
Faz anos amanhã... Vamos! procura
A rima de ouro mais brilhante, a rosa
De cor mais viva e de maior frescura!"
E eu murmurei comigo: "Mentirosa!"
E segui. Pois tão cego fui por elas,
Que, enfim, curado pelos seus enganos,
Já não creio em nenhuma das estrelas...
E - mal de mim! - eis-me, a teus pés, em pranto...
Olha: se nada fiz para os teus anos,
Culpa as tuas irmãs que enganam tanto!
XXVIII
Pinta-me a curva destes céus... Agora,
Erecta, ao fundo, a cordilheira apruma:
Pinta as nuvens de fogo de uma em uma,
E alto, entre as nuvens, o raiar da aurora.
Solta, ondulando, os véus de espessa bruma,
E o vale pinta, e, pelo vale em fora,
A correnteza túrbida e sonora
Do Paraíba, em torvelins de espuma.
Pinta; mas vê de que maneira pintas...
Antes busques as cores da tristeza,
Poupando o escrínio das alegres tintas:
- Tristeza singular, estranha mágoa
De que vejo coberta a natureza,
Porque a vejo com os olhos rasos d'água.
XXIX
Por tanto tempo, desvairado e aflito,
Fitei naquela noite o firmamento,
Que inda hoje mesmo, quando acaso o fito,
Tudo aquilo me vem ao pensamento.
Saí, no peito o derradeiro grito
Calcando a custo, sem chorar, violento...
E o céu fulgia plácido e infinito,
E havia um choro no rumor do vento...
Piedoso céu, que a minha dor sentiste!
A áurea esfera da lua o ocaso entrava,
Rompendo as leves nuvens transparentes;
E sobre mim, silenciosa e triste,
A via-láctea se desenrolava
Como um jorro de lágrimas ardentes.
XXX
Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.
Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.
E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;
E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.
XXXI
Longe de ti, se escuto, porventura,
Teu nome, que uma boca indiferente
Entre outros nomes de mulher murmura,
Sobe-me o pranto aos olhos, de repente...
Tal aquele, que, mísero, a tortura
Sofre de amargo exílio, e tristemente
A linguagem natal, maviosa e pura,
Ouve falada por estranha gente.
Porque teu nome é para mim o nome
De uma pátria distante e idolatrada,
Cuja saudade ardente me consome:
E ouvi-lo é ver a eterna primavera
E a eterna luz da terra abençoada,
Onde, entre flores, teu amor me espera.
XXXII
 A um poeta.
Leio-te: - o pranto dos meus olhos rola:
- Do seu cabelo o delicado cheiro,
Da sua voz o timbre prazenteiro,
Tudo do livro sinto que se evola...
Todo o nosso romance: - a doce esmola
Do seu primeiro olhar, o seu primeiro
Sorriso, - neste poema verdadeiro,
Tudo ao meu triste olhar se desenrola.
Sinto animar-se todo o meu passado:
E quanto mais as páginas folheio,
Mais vejo em tudo aquele vulto amado.
Ouço junto de mim bater-lhe o seio,
E cuido vê-la, plácida, a meu lado,
Lendo comigo a página que leio.
XXXIII
Como quisesse livre ser, deixando
As paragens natais, espaço em fora,
A ave, ao bafejo tépido da aurora,
Abriu as asas e partiu cantando.
Estranhos climas, longes céus, cortando
Nuvens e nuvens, percorreu: e, agora
Que morre o sol, suspende o vôo, e chora,
E chora, a vida antiga recordando...
E logo, o olhar volvendo compungido
Atrás, volta saudosa do carinho,
D0 calor da primeira habitação...
Assim por largo tempo andei perdido:
Ah! que alegria ver de novo o ninho,
Ver-te, e beijar-te a pequenina mão!
XXXIV
Quando adivinha que vou vê-la, e à escada
Ouve-me a voz e o meu andar conhece,
Fica pálida, assusta-se, estremece,
E não sei por que foge envergonhada.
Volta depois. À porta, alvoroçada,
Sorrindo, em fogo as faces, aparece:
E talvez entendendo a muda prece
De meus olhos, adianta-se apressada.
Corre, delira, multiplica os passos;
E o chão, sob os seus passos murmurando,
Segue-a de um hino, de um rumor de festa...
E ah! que desejo de a tomar nos braços,
O movimento rápido sustando
Das duas asas que a paixão lhe empresta.
XXXV
Pouco me pesa que mofeis sorrindo
Destes versos puríssimos e santos:
Porque, nisto de amor e íntimos prantos,
Dos louvores do público prescindo.
Homens de bronze! um haverá, de tantos,
(Talvez um só) que, esta paixão sentindo,
Aqui demore o olhar, vendo e medindo
O alcance e o sentimento destes cantos.
Será esse o meu público. E, decerto,
Esse dirá: "Pode viver tranqüilo
Quem assim ama, sendo assim amado!"
E, trêmulo, de lágrimas coberto,
Há de estimar quem lhe contou aquilo
Que nunca ouviu com tanto ardor contado.

Fim

terça-feira, 26 de abril de 2011

Conserve seu medo - Raul Seixas e Paulo Coelho

Conserve seu medo
Mantenha ele aceso
Se você não teme
Se você não ama
Vai acabar cedo

Esteja atento
Ao rumo da História
Mantenha em segredo
Mas mantenha viva
Sua paranóia

Conserve seu medo
Mas sempre ficando
Sem medo de nada
Porque dessa vida
De qualquer maneira
Não se leva nada

E ande pra frente
Olhando pro lado
Se entregue a quem ama
Na rua ou na cama
Mas tenha cuidado

Cuidado! Ah! Ah!

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Fado Tropical - Chico Buarque

Oh, musa do meu fado,
Oh, minha mãe gentil,
Te deixo consternado
No primeiro abril,

Mas não sê tão ingrata!
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!

"Sabe, no fundo eu sou um sentimental.
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro).
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."

Com avencas na caatinga,
Alecrins no canavial,
Licores na moringa:
Um vinho tropical.

E a linda mulata
Com rendas do alentejo
De quem numa bravata
Arrebata um beijo...

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa".

Guitarras e sanfonas,
Jasmins, coqueiros, fontes,
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre trás-os-montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo...

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal:
Ainda vai tornar-se um império colonial!

O espelho - João Nogueira

 
Nascido no subúrbio nos melhores dias
Com votos da família de vida feliz
Andar e pilotar um pássaro de aço
Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço
Com as fardas mais bonitas desse meu país
O pai de anel no dedo e dedo na viola
Sorria e parecia mesmo ser feliz

Eh, vida boa
Quanto tempo faz
Que felicidade!
E que vontade de tocar viola de verdade
E de fazer canções como as que fez meu pai (Bis)

Num dia de tristeza me faltou o velho
E falta lhe confesso que ainda hoje faz
E me abracei na bola e pensei ser um dia
Um craque da pelota ao me tornar rapaz
Um dia chutei mal e machuquei o dedo
E sem ter mais o velho pra tirar o medo
Foi mais uma vontade que ficou pra trás

Eh, vida à toa
Vai no tempo vai
E eu sem ter maldade
Na inocência de criança de tão pouca idade
Troquei de mal com Deus por me levar meu pai (Bis)

E assim crescendo eu fui me criando sozinho
Aprendendo na rua, na escola e no lar
Um dia eu me tornei o bambambã da esquina
Em toda brincadeira, em briga, em namorar
Até que um dia eu tive que largar o estudo
E trabalhar na rua sustentando tudo
Assim sem perceber eu era adulto já

Eh, vida voa
Vai no tempo, vai
Ai, mas que saudade
Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade
E orgulho de seu filho ser igual seu pai
Pois me beijaram a boca e me tornei poeta
Mas tão habituado com o adverso
Eu temo se um dia me machuca o verso
E o meu medo maior é o espelho se quebrar (Bis)

O MONOPÓLIO DO SERVIÇO POSTAL

MONOPÓLIO POSTAL:
Serviço público prestado exclusivamente pelo Estado ou uma atividade econômica de livre concorrência?
A necessidade de uma nova regulamentação para o setor

Pré-projeto apresentado na Disciplina de Metodologia Científica como requisito básico para a apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso do Curso de Administração.

Orientador (a):
Professora Ana Paula Cortat Zambrotti Gomes

Fundação Getúlio Vargas – FGV
Curso de Pós-Graduação em Administração Pública – CIPAD 8
Brasília - DF
2011

1. INTRODUÇÃO

Uma estrutura de mercado é monopolista quando existe um único agente econômico do lado da oferta e muitos do lado da procura. Considera-se monopólio público quando o Estado é o titular da empresa pública ou quando este possui participação majoritária na estrutura acionista. Haverá, portanto, monopólio legal, quando a empresa monopolista for protegida por leis e mecanismos econômicos.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT foi criada pelo Decreto nº 509, de 1696, que dispunha sobre a transformação do Departamento de Correios e Telégrafos em empresa pública. Contudo, em junho de 1978, nova Lei Complementar veio regular os direitos e obrigações concernentes ao serviço postal e o serviço de telegrama. A Lei 6.538, de 1978, vinculou a empresa pública ao Ministério das Comunicações, com diversas atividades postais, além de coletar, transportar, transmitir ou distribuir objetos de qualquer natureza sujeitos ao monopólio da União.

Ocorre, porém, que a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 177 não recepcionou o serviço postal como monopólio legal da Estado. Apenas insere o ato de manter o serviço postal e o correio aéreo nacional no âmbito das competências da União (artigo 20, inciso X). Entretanto o fenômeno conhecido como “mutação constitucional” , hipótese que a Carta Federal fica obsoleta, permite a interpretação evolutiva reconhecendo que essas “mutações constitucionais silenciosas funcionam, na verdade, como atos legítimos de interpretação constitucional”. Será que sentido de manter o serviço postal é hoje o mesmo de oitenta anos atrás?

A menção ao serviço postal no corpo constitucional foi inserida na Constituição Federal em 1934, fixou-se como entendimento de cabia privativamente à União manter o serviço postal, o que veio sendo repetido em todas as Constituições que seguiram, na de 1937, de 1946, de 1969 e na Lei Fundamental em vigor, sendo que apenas a Carta de 1937 contemplou exclusividade.

2. OBJETIVO

2.1 GERAL

Este trabalho destina-se ao estudo do monopólio do serviço postal brasileiro. Analisa, para tanto, qual o papel do Estado na prestação do serviço postal: se é uma prestação de serviços públicos sujeita a monopólio legal ou se trata de uma atividade econômica.

Uma empresa pública tem o dever de ser eficiente em sua gestão, ainda que loteada de apadrinhados políticos, esta estatal deve cumprir sua missão institucional de servir ao cidadão com eficiência. Sendo o serviço postal um serviço público de prestação obrigatória e exclusiva da União, deveria ser gratuito, ou remunerado através de taxas. A retribuição cobrada pela ECT por sua prestação caracteriza-se como tributo e não tarifa, como sempre entendeu, deveria ser taxas sujeitas aos princípios constitucionais correspondentes.

2.2 ESPECÍFICO

Antes símbolo de eficiência, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT passou a reproduzir nos últimos anos o que há de pior na administração pública. Loteada, a estatal teve seus principais cargos usados pelo governo como moeda política. Foi assim que eclodiu o escândalo do mensalão e as denúncias que derrubaram a ex-ministra da Casa Civil.

A melhor saída para a empresa seria obrigá-la a enfrentar um mercado competitivo, flexibilizando o seu monopólio sobre serviços postais essenciais. Porque quando confrontado com um mercado monopolista os consumidores tornam-se impotentes, restando apenas resignar-se às condições impostas pelo vendedor.

3. REFERENCIAL TEÓRICO

Reputam o serviço postal como um serviço público a doutrina majoritária e a jurisprudência no Brasil. Citam o serviço postal como um exemplo de serviço público, entre outros autores, Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, Eros Roberto GRAU, Marçal JUSTEN FILHO, Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, Diógenes GASPARINI, Hely Lopes MEIRELLES, José Afonso da SILVA, Odete MEDAUAR e Floriano Peixoto de Azevedo MARQUES NETO.

Todavia há sérias controvérsias sobre o tema, pois existe quem qualifique o serviço postal como atividade econômica: “Por outro lado, Luís Roberto BARROSO e Celso Ribeiro BASTOS sustentam que, à luz da CF/88, o serviço postal é atividade econômica estrito senso, objeto de monopólio estatal.” Para aqueles que defendem o serviço postal como um serviço público, afasta-se a exploração do serviço da iniciativa privada, salvo por delegação facultada ao Estado. Contudo, se enquadrado como a natureza de atividade econômica, o serviço postal estará livre para atuação privada neste setor, ou seja, a classificação do serviço depende do limite de sua exploração econômica pela iniciativa privada e de sua monopolização pelo Estado.

Para se classificar o serviço postal, faz-se necessário estabelecer a distinção entre serviço público e atividade econômica estrito senso. Para Hely Lopes MEIRELLES: “Serviço público é todo aquele prestado pela administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundarias da coletividade ou simples conveniências do Estado.” José CRETELLA JÚNIOR conceitua: “serviço publico é, portanto, toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para a satisfação das necessidades públicas, mediante procedimento peculiar ao direito público, derrogatório e exorbitante do direito comum”.

Já Celso Antonio BANDEIRA DE MELLO ensina que “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade pública ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça às vezes, sob um regime de Direito Público”.

Ubirajara COSTÓDIO FILHO estabelece a distinção perfeita entre serviço público e atividade econômica em sentido estrito: “doutrinariamente falando e à luz da Constituição Econômica brasileira, o traço distintivo entre os serviços públicos e as atividades econômicas reside na presença, no primeiro caso, e na ausência, no segundo caso, de dever estatal quanto à sua prestação”.

Em novembro de 2003, a Corte do Supremo Tribunal Federal – STF, foi provocada por uma Argüição de Preceito Fundamental – ADPF nº 46, impetrada pela Abraed – Associação Brasileira das Empresas de Distribuição. Segundo os advogados da entidade, a Constituição de 1988 não teria recepcionado a Lei nº 6.538, de 1978, que regulamentou o monopólio. Em 2009, o ministro Marco Aurélio de Melo produziu um extenso voto no qual fez uma profunda retrospectiva na história da participação do estado na economia.

O debate concentrou-se na natureza dos serviços postais. Seria um serviço público a ser prestado exclusivamente pelo Estado ou seria uma atividade econômica, que permitiria a livre concorrência? Para o ministro se trata de uma atividade econômica, uma vez que a ECT, no período de 1990 a 1994, celebrou perto de 2 mil contratos de franquias com a com a iniciativa privada. E fez isso sem autorização constitucional ou talvez porque já percebera que não se tratava mais de serviço público. Ministro afirmou:

“os preceitos violados pelo monopólio dos CORREIOS são essenciais à ordem constitucional vigente, configurando princípios e fundamentos da República, como a livre iniciativa – artigo 1º, inciso IV - também a liberdade no exercício de qualquer trabalho – artigo 5º, inciso XIII – a livre concorrência – artigo 170, cabeça e inciso IV – e o livre exercício de qualquer atividade econômica – artigo 170, parágrafo único)”.

4. O MERCADO POSTAL BRASILEIRO

O serviço postal, durante muito tempo, foi executado pela União, e não somente mantido, porque não havia empresas com capacidade operacional suficiente para atuar no setor de correspondências por todo o território nacional. Contudo, a partir da década de 80, surge no Brasil à tendência do Estado se retirar da prestação direta das atividades econômicas.

Essa progressiva retirada aliada à drástica redução da participação econômica, trousse consigo a necessidade de monitoramento dessas atividades, visando evitar, sobretudo, condutas anticoncorrenciais ou concentração empresarial, além de garantir a qualidade, a universalidade e a continuidade do serviço, proteger o consumidor contra a ineficiência, o domínio do mercado, a concentração econômica e a concorrência desleal.

Porém em matéria de transporte e logística postal, o Brasil coloca-se na contramão do mundo. De fato, em muitos países o serviço postal foi privatizado ou, no mínimo, a empresa estatal de correios passou a concorrer com congêneres privadas. À exceção da Holanda e da Argentina, onde o serviço postal foi privatizado, o que se observa geralmente é a participação de recursos públicos e privados na operacionalização dos serviços postais, havendo, portanto, um regime de concorrência na maior parte dos setores de entrega, como na Alemanha e na França, onde se formaram as joint-ventures para atuar no setor.

A Finlândia, a Suécia e a Nova Zelândia aboliram completamente o monopólio estatal do serviço de entrega de correspondências. A União Européia patrocinou fundamentos para o fim do monopólio postal às nações integrantes do bloco, orientando políticas que flexibilizem os mercados. Nos Estados Unidos, a empresa estatal tem o monopólio da entrega às cartas comuns, mas quanto às encomendas expressas e ao serviço rápido, são abertos à concorrência .

A ECT que do alto da sua história de mais de três séculos de prestígio junto à sociedade, do seu quadro de mais de 100 mil funcionários e servidores, e de um faturamento de R$ 12,5 bilhões, vêm alijando do mercado seus concorrentes, seja sob o manto do monopólio postal, seja por desfrutar de privilégios que tornam impossível uma competição justa.

O transporte privado de cargas fracionadas, conhecido internacionalmente como LTL (less than truck load) compreende desde pequenas encomendas, expressas ou não, até grande quantidade de volumes, é exercido por milhares de empresas privadas, de todos os tamanhos, algumas com mais de meio século de atuação no mercado. Há organizações LTL operando em todo o país com mais de mil veículos.

Atualmente no Brasil existe meio milhão de microempresas e transportadores autônomos, que, individualmente, atendem a uma região, uma cidade e às vezes um único cliente, como é o caso das empresas de transporte de malotes ou documentos, geralmente expressos, com prazo certo, conhecido como courier, onde, inclusive algumas multinacionais estão voltadas, em especial, a esta modalidade internacional.

O seguro de cargas no Brasil é obrigatório, não é só o seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Cargas – RCTR-C, como subliminarmente obrigatório, mas também o seguro de Responsabilidade Civil Facultativa por desaparecimento de Carga - RCF-DC. Em média, o custo do gerenciamento de riscos de uma transportadora, adicionado ao custo de seguros, pode chegar a 15% do seu faturamento.

No seminário: “Logística, transporte e competitividade” promovido pelo jornal Valor Econômico, em 19 de abril de 2006, o Sr. Everton Luiz Cabral Machado, Diretor de Operação dos Correios, informou que: “a empresa repassou à União, a título de dividendos, a importância de R$ 400 milhões”, ou seja, houve prejuízo, uma vez que se essa organização fosse privada, deveria estar repassando ao erário, somente em tributos, um valor aproximado de R$ 3,7 bilhões, e não apenas os dividendos.

A guerra fiscal existente hoje entre os Estados da Federação tem como subproduto mais cruel a obrigatoriedade de manter os caminhões das transportadoras por horas e até dias a fio nas barreiras fiscais existentes nas divisas de Estado, a fim de que os mesmos se submetam a um rito jurássico de fiscalização em condições subumanas, gerando custos incalculáveis a todas as empresas de transportes, o que não ocorre com os veículos da ECT que passam livremente por esses postos.

Apesar do grande esforço que empreende a ECT e dos excelentes serviços prestados, reconhecidos por todos, ainda não foi possível cumprir o objetivo da universalização, porquanto mais de 37 milhões de brasileiros estão sem entrega domiciliária e mais de 30 milhões sem acesso a um atendimento postal adequado. Acrescenta-se ao cenário a existência de milhares de operadores privados atuado no mercado postal, não abrangido pelo marco regulatório do setor (Lei nº 6.538/78). Esse fato dificulta o cumprimento da missão institucional daquela empresa, que é prestar serviços de qualidade a todo universo de sociedade brasileira, a tarifas acessíveis.

5. SERVIÇO PÚBLICO OU ATIVIDADE ECONÔMICA?

A prestação dos serviços públicos está previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 175 que assim está disposto: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.” Já a prestação da atividade econômica está assegurada também na Constituição federal em seu artigo 170 parágrafo único: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

O serviço postal é uma comodidade básica da sociedade, sua oferta aos administrados é feita em conformidade com o princípio da generalidade do serviço público, reconhecida a todos igualmente o direito à sua prestação conforme artigo 4º da Lei nº 6.538/78: “É reconhecido a todos o direito de haver prestação do serviço postal e do serviço de telegrama, observadas as disposições legais e regulamentares” , predisposto, por isso mesmo, o caráter de serviço essencial, que não se visa o lucro, apenas prestado de forma onerosa para que suas despesas possam ser pagas e mantenha a universalidade do serviço.

A Constituição Federal de 1988 aparta as noções de serviço público e atividade econômica. Daí a necessária distinção jurídica entre ambas para constatar: se a atividade postal tem cunho econômico, e se comporta exploração comercial, ou se o Estado estando presente na atividade postal viola o principio da subsidiariedade. A distinção é necessária em virtude da diversidade de regime jurídico aplicáveis aos serviços públicos e às atividades econômicas.

O Decreto-Lei nº 509, de 1969, e a Lei nº 6.538, de 1978, não classificam o serviço postal, nem como serviço público, nem como atividade econômica. Por outro lado, ambos prevêem exploração econômica do serviço em regime de monopólio, sem mencionar as hipóteses de delegação de serviços públicos (concessão e permissão). A Lei nº 6.538/78 autoriza a ECT no seu artigo 2º, §3º:

“§3º - A empresa exploradora dos serviços, atendendo a conveniências técnicas e econômicas, e sem prejuízo de suas atribuições e responsabilidades, pode celebrar contratos e convênios objetivando assegurar a prestação dos serviços, mediante autorização do Ministério das Comunicações.”

Ademais a ECT é uma empresa pública, essa definição reforça a impressão de atividade econômica, vejamos o artigo 5º, inciso II do Decreto-Lei 200/67:

“Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:
(...)
II - Empresa Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito.”

Por lado, o mesmo Decreto-Lei 509/69 instituiu vantagens em favor da ECT típicas de prestadores de serviços públicos, como exemplo no seu artigo 12:

“Art. 12º - A ECT gozará de isenção de direitos de importação de materiais e equipamentos destinados aos seus serviços, dos privilégios concedidos à Fazenda Pública, quer em relação a imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais.”

Portanto, nem a doutrina nem os tribunais costumam atentar para a inclusão do serviço postal no artigo 1º da Lei n. 9.074/95, inclusão esta que se deu por meio da Lei 9.648/98, a qual introduziu os serviços postais no rol de serviços sujeitos ao regime de concessões e permissões de serviços públicos. Portanto hoje o serviço postal teve ser tomado, como serviço público federal. Vejamos o referido artigo:

Art. 1º Sujeitam-se ao regime de concessão ou, quando couber, de permissão, nos termos da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, os seguintes serviços e obras públicas de competência da União:
(...)
VII - os serviços postais. (Incluído pela Lei n. 9.648, de 1998).

A Lei 6.538, de 1978, vinculou a empresa pública ao Ministério das Comunicações, com atividades postais de recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para exterior, de correspondência agrupada, fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal, além de coletar, transportar, transmitir ou distribuir objetos de qualquer natureza sujeitos ao monopólio da União.

Portanto, hoje de acordo com a Lei 6.538, de 1978, adota-se o modelo que define uma área de serviços reservados ao monopólio postal, onde a legislação brasileira permite estabelecer monopólio nos serviços de carta , cartão postal , correspondência agrupada e telegrama.

7. METODOLOGIA DA PESQUISA

A pesquisa requer a utilização de várias metodologias para atender aos objetivos gerais e específicos propostos:

- Pesquisa bibliográfica para o fundamento teórico das atribuições da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT a luz da Constituição Federal e das leis infraconstitucionais, assim como para o levantamento conceitual dos termos empregados, baseada em livros nacionais e estrangeiros e artigos científicos, com o intuito de desenvolver um estudo profundo sobre o tema;

- Pesquisa documental para a coleta de dados que fundamentem os argumentos levantados no estudo, devendo ser feita através de legislação infraconstitucional e constitucional; na ADPF 46 e em registros bibliográficos, observando principalmente os conceitos de monopólio de mercado, serviço público e atividade econômica.

8. CONCLUSÕES

Questões que surgem em grande parte das discussões em relação à existência ou não do monopólio postal, acabaria se tivéssemos uma legislação mais atual. O Decreto-Lei nº 509/69 que criou a ECT, como empresa pública federal que, além de explorar serviço exclusivo da União, atuaria em concorrência com particulares em outros segmentos. Contudo, este modelo, criado na década de 1960, hoje lida com algumas incongruências no atendimento a nova realidade brasileira, por todas as razões expostas.

O Supremo tribunal Federal – STF julgou a ADPF nº46 improcedente, tendo em vista que, ao seu entendimento, o serviço postal é o conjunto de atividades que torna possível o envio de correspondência, ou objeto postal não consubstancia atividade econômica em sentido estrito. Serviço postal é serviço público. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito. Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos entre si. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida pelo Estado.

Contudo, de acordo com o próprio Ministério das Comunicações, hoje a ECT se caracteriza por apresentar dupla vertente. A primeira vertente social que está relacionada à prestação de serviços postais à população em localidades onde o modelo de mercado concorrencial é incapaz de fazê-lo e também à prestação de serviços de interesse social, e um prolongamento da ação governamental. A segunda vertente empresarial e em regime privado, que se volta para a exploração econômica de segmentos de mercados em competição, com o objetivo de financiar a primeira vertente, a social.

Destarte, estabeleceu-se aqui a relação dos serviços postais com a atividade econômica diferenciando do serviço público, mas todas estas constatações não são pacíficas, pois se temos de um lado um serviço postal “eficiente”, temos de outro uma regulamentação defasada, que não corresponde à realidade da competição no serviço postal brasileiro surgindo à necessidade de nova regulamentação para pôr fim às divergências em torno do tema.

No julgamento histórico, em agosto de 2009, o Supremo Tribunal Federal manteve o monopólio dos Correios no envio de correspondências comerciais, como as contas de luz por exemplo. Contudo, atualmente nove das sessenta e três distribuidoras em operação mantêm contrato com os Correios, as demais se utilizam de estrutura própria, terceirizam os serviços ou adotam um sistema de faturamento direto (o funcionário faz a leitura do relógio e imprime a fatura na hora). As distribuidoras, AES Eletropaulo – Eletricidade de São Paulo S.A, Companhia Energética de Brasília – CEB, Ampla Energia e Serviços S.A, Companhia Energética do Ceará – COELCE e Companhia Energética do Maranhão – CEMAR, já operam com faturamento direto. Inclusive a Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG, que se utiliza dos Correios para entregar 7 milhões de contas por mês, pretende rever a operação.

Portanto, concluímos que o fim do monopólio do Estado terá como resultado um serviço melhor e o desenvolvimento de novos e inovadores produtos para os consumidores em face do aumento da competição. Os consumidores teriam a possibilidade de escolher entre vários produtos e preços, dependendo das necessidades e não ficar “refém” de uma empresa apenas.

“Gravíssimos são as conseqüências de um setor público ineficaz para o conjunto do sistema econômico como a constante pressão orçamentária e fiscal, o aumento extorsivo da carga tributária, o descrédito internacional, a hiperinflação, a redução das taxas de crescimento e a estagnação da renda dos habitantes.”

Marco Aurélio de Melo


REFERÊNCIAS

VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político. Madrid: Tecnos, 1984, v. 4.

HESSE, Konrad. Escritos de Derecho Constitucional. Tradução e prefácio de P. Cruz Villalon. 2ª Ed. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1992.

STF, ADPF 46-7, Rel. Ministro Marco Aurélio de Melo.

COSTÓDIO FILHO, Ubirajara. O serviço Postal no Direito Brasileiro. Curitiba: J M, 2006.

CRETELLA JUNIOR, José. Administração Indireta Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004

SILVA, Jose Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 20ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000.

HELOU, Urubatan. Um selo contra a ética. In A injustiça do monopólio postal, SETCESP.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. organização do texto: Odete Medauar. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007.

BRASIL. Presidência da república. Lei n. 6.538 de 22 de junho de 1978. Dispõe sobre os serviços postais.

BRASIL. Presidência da república. Decreto-Lei n. 200 de 25 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências.

BRASIL. Presidência da república. Decreto-Lei n. 509 de 20 de março de 1969. Dispõe sobre a transformação do Departamento dos Correios e Telégrafos em empresa pública, e dá outras providências.

MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES. Serviços Postais. Disponível em . Acesso em 09 de maio de 2007.

Seminário “Logística, transporte e competitividade”, Valor Econômico, em 19 de abril de 2006

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Bhagavad-Gita

Canto VII
Sabedoria da Visão Espiritual
Fala Krishna:

1. Escuta agora, filho de Pritha, como, mantendo o pensamento amorosamente voltado para Mim, aplicando-te à Yoga e fazendo de Mim teu refúgio, chegarás sem dúvida a conhecer-me por completo.

2. Vou revelar-te sem reservas este conhecimento e o superconhecimento. Desde que os adquira, nada resta por aprender neste mundo.

3. Entre milhares de mortais, poucos se esforçam para atingir a perfeição, e entre os que conseguem atingi-la poucos são os que Me conhecem em essência.

4. Terra, água, fogo, ar, éter, pensamento, intelecto e consciência pessoal são os oito componentes que integram a Minha natureza material.

5. Esta é Minha natureza inferior. Conhece agora, ó tu de braço poderoso, Minha outra natureza, a superior, o elemento vital que mantém o Universo.

6. Sabe que esta (Minha dupla natureza) é a fecunda matriz de todos os seres. Sou o princípio do Mundo e Sou também seu fim.

7. Não há absolutamente nada superior a Mim, Dhananjaya. Todo Universo está preso a mim, como as pérolas de um colar estão presas ao fio que as mantém unidas.

8. Eu sou, filho de Kunti, o sabor da água, a luz do Sol e da Lua, das palavras sagradas Eu sou o pranava OM (=OM). O som no éter e a virilidade nos homens.

9. Sou puro perfume na terra, o brilho do fogo, a vida dos vivos, a santidade dos santos.

10. Sabe, filho de Pritha, que Sou a semente de toda a manifestação, sou a sabedoria dos sábios e o poder dos poderosos.

11. Sou a força dos fortes, livre de apego; Eu Sou o puro amor dos amantes, ó príncipe dos bharatas.

12. Entende que de Mim procedem todas as coisas - consciência, energia e matéria; Eu não estou nelas mas elas estão em Mim.

13. Iludido pelos três atributos da natureza (satwa, rajas e tamas), que se revelam em todas as coisas, não sabe que Eu estou acima delas e sou imperecível e imutável.

14. Difícil, ó príncipe, é romper o véu de ilusão que cerca a manifestação. Somente aquele que se aproximam de Mim superam a ilusão.

15. Os maus e os insensatos não Me procuram; seu entendimento foi arrebatado pela ilusão e eles participam da natureza demoníaca.

16. Quatro espécies de homens Me adoram, Arjuna: os aflitos, os que buscam a sabedoria, os que desejam riquezas e os sábios, ó príncipe dos bharatas.

17. Entre eles, o sábio, sempre consagrado à união mística e adorando o Uno, excede todos os demais; pois o sábio Me ama acima de todas as coisas e Eu o amo da mesma forma.

18. Todos eles são nobres, mas considero o sábio como a Mim mesmo, pois consagrado à união espiritual ele vem a Mim, meta suprema.

19. Ao fim de numerosos nascimentos, o homem dotado de sabedoria chega a Mim pensando: Vasudeva é o Todo. "Um homem com tão grande alma é difícil de encontrar".

20. Aqueles, cujo desejo foi arrebatado por um desejo qualquer, procuram outras divindades, adotando tal ou qual forma de culto, de acordo com a sua própria natureza.

21. Qualquer que seja a forma de divindade a que um devoto pretenda render culto com verdadeira fé, sou Eu realmente quem inspira essa fé inquebrantável.

22. Cheio dessa fé. o devoto procura agradar tal divindade, servindo-a com esmêro e dela consegue a satisfação dos seus desejos. Mas sou Eu que lhe ofereço tais bens.

23. No entanto, a recompensa obtida por esses homens de pequeno entendimento é limitada. Quem adora os deuses vai aos deuses; quem Me adora vem a Mim.

24. Os ignorantes, desconhecendo minha natureza de ser supremo e imperecível, pensam que Eu, imanifesto como sou, tenho uma forma visível e manifesta.

25. Oculto por Meu poder criador de ilusão, não me manifesto a todos, e por isso o mundo, vítima do engano, Me desconhece. Eu que não estou sujeito ao nascimento nem à morte.

26. Eu conheço todos os seres, passados, presentes e futuros, Arjuna, mas nenhum deles Me conhece.

27. Pela ilusão dos "pares contrários", originada da atração e repulsão, ó descendente de Bharata, toda criatura, ao nascer, é conduzida ao engano, ó terror de teus inimigos.

28. Mas aqueles homens de atos virtuosos, cujos pecados chegaram ao fim, libertam-se da ilusão dos pares contrários e Me adoram com vontade perseverante.

29. Aqueles que se refugiam em Mim, esforçando-se para livra-se da velhice e da morte, conhecem Brahma, o espírito supremo e a ação em sua integridade.

30. E aqueles que, com o pensamento concentrado, Me conhecem como ser supremo, suprema divindade e supremo sacrifício, também Me conhecem verdadeiramente na hora da morte.



quarta-feira, 13 de abril de 2011

Novo Aeon - Raul Seixas


O sol da noite agora está nascendo
Alguma coisa está acontecendo
Não dá no rádio nem está
Nas bancas de jornais
Em cada dia ou qualquer lugar
Um larga a fábrica, outro sai do lar
E até as mulheres, ditas escravas,
Já não querem servir mais
Ao som da flauta
Da mãe serpente
No para-inferno
De Adão na gente
Dança o bebê
Uma dança bem diferente

O vento voa e varre as velhas ruas
Capim silvestre racha as pedras nuas
Encobre asfaltos que guardavam
Hitórias terríveis
Já não há mais culpado
nem inocente
Cada pessoa ou coisa é diferente
Já que assim, baseado em que
Você pune quem não é você?

Ao som da flauta
Da mãe serpente
No para-inferno
De Adão na gente
Dança o bebê
Uma dança bem diferente

Querer o meu
Não é roubar o seu
Pois o que eu quero
É só função de eu
Sociedade alternativa
Sociedade novo aeon
É um sapato em cada pé
É direito de ser ateu
Ou de ter fé
Ter prato entupido de comida
Que você mais gosta
É ser carregado, ou carregar
Gente nas costas
Direito de ter riso e de prazer
E até direito de deixar
Jesus Sofrer

As Flores do Mal - Charles Baudelaire


AO LEITOR

A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.

Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.

Na almofada do mal é Satã Trimegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.

É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma jóia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.

Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.

Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.

Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.

Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,

Um há mais feios, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;

É o Tédio! - O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
- Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!